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Frase

"(...) A história se repete: a primeira vez como tragédia. A segunda e outras vezes como farsa da tragédia anunciada. (...)" Karl Heinrich Marx (05/05/1818-14/03/1883)

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terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Francisco e os desafios de um clero “mágico” e “burocrata”

Às vésperas de completar quatro anos como papa Francisco (foi eleito em 13-03-2013), apesar da grande popularidade entre fiéis, Mario Bergoglio está longe do que se poderia considerar como uma situação de conforto. Além dos desafios da humanidade contemporânea que o papa tem chamado para si, há, dentro da Igreja, resistência ao “estilo Francisco”.


Por: João Vitor Santos (IHU)
Recentemente, cartazes foram espalhados em Roma acusando o herdeiro do trono de Pedro de quebrar a unidade da Igreja. Além disso, um grupo de cardeais vem a público mostrar suas diferenças com o papa, além das contestações de ordem religiosa. Para o teólogo e professor da PUC-SP Fernando Altemeyer Junior, apesar de tudo, há o que comemorar, porque até a oposição revela que a reforma de Francisco vai avançando.
Na conversa de mais de uma hora com a IHU On-Line por telefone, Altemeyer se detém a analisar a recepção a Francisco. Segundo ele, a resistência se dá pelos anos de silêncio e de esquecimento aos temas do Concílio Vaticano II. “Francisco é um filho do Concílio e quer que a gente assuma tudo, mas também o diálogo, o aggiornamento, a questão mesma da reforma da Igreja”, pontua. Para o professor, esses 40 anos pós-concílio formaram um clero distante da mística evangélica do Cristo. Quando Francisco propõe essa volta, é mal compreendido. “Criamos um clero muito mais voltado para a burocracia. E, também, um certo tipo de padre muito mais feiticeiro do que evangelizador”, dispara.
Altemeyer ainda destaca que “o padre moderno gosta de ser um sujeito de poder mágico, quer pôr a mão na cabeça, quer holofote na missa” e isso lhe afasta do mundo real dos fiéis. Para ele, é a mesma lógica que faz com que não compreendam a densidade dos documentos de Francisco, como Amoris Laetitia. “Família é o tema central, mas embutido no documento está a sexualidade. A Igreja, até hoje, nem conversa com [SigmundFreud. Imagine o atraso”, aponta. Na entrevista, o teólogo ainda reflete sobre a recepção a Laudato Si’, que se dá de forma mais intensa fora dos circuitos da Igreja, e os desafios da Igreja no Brasil. “É preciso assumir a cara de seu povo e encarar a forma como o jovem pós-moderno não se assume religiosamente”, diz, sobre a realidade brasileira.
Fernando Altemeyer Junior é teólogo leigo, possui graduação em Filosofia e em Teologia, mestrado em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain-La-Neuve, na Bélgica, e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC. Atualmente é professor e integra o Departamento de Ciência da Religião, da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP. Entre suas publicações, destacamos Aparecida, caminhos da fé (São Paulo: Loyola, 1998), Deus sem poder (In: Centro de Estudos da antiguidade greco-romana – PUC-SP. (Org.). Hypnos 6. São Paulo: Palas Athena, 2000, v. 6, p. 57-63) e A recepção do projeto do papa Francisco (In: Wagner Lopes Sanchez; Eulálio Figueira. (Org.). Uma Igreja de portas abertas – nos caminhos do papa Francisco. 1ed. São Paulo – SP: Paulinas, 2016, v. 1, p. 23-38).
CONFIRA A ENTREVISTA
IHU On-Line – Qual sua avaliação sobre o pontificado de Francisco?
Fernando Altemeyer Junior – Eu estou entusiasmado, tenho até dificuldade em ter uma distância crítica. Esses quatro anos têm sido muito fecundos. O fenômeno Francisco está realmente avançando e sendo bem acolhido, fazendo uma reforma na Igreja e em seus fundamentos. Fico muito feliz com o estilo do papa, sua forma de ser pastor e bispo de Roma, com suas propostas, viagens e todos os sinais. O pacote é muito bom.
IHU On-Line – No que o atual pontificado fez avançar e quais seus maiores desafios?
Fernando Altemeyer Junior – Em quatro anos, ele fez muito em vista ao que tínhamos paralisado em quase 50 anos de bloqueio ao Concílio Vaticano II. É inegável sua sintonia com o mundo atual, todo o contato com as situações de pobreza, assumiu uma postura profético-sapiencial inegável em relação à imigração, aos refugiados, às culturas. Internamente, é positiva a nomeação dos 44 novos cardeais, que são de todos os azimutes do planeta e com perspectivas pastorais muito mais concretas.
Ainda há a questão da sintonia que ele assumiu, especialmente na Laudato Si’, com a questão ecológica. Tudo isso são avanços consideráveis que estavam em semente, mas que não tinham eclodido. Agora, com ele, como um catalisador, isso se fez. A questão migratória é a questão atual do planeta e ele a assumiu. A questão dos refugiados explodiu como a questão mais grave para a Europa, os Estados Unidos e países do primeiro mundo que fizeram muros; o papa quebrou esses muros e falou das pontes. Esses são os pontos positivos.
IHU On-Line – De que forma essa nomeação de novos cardeais representa um avanço de Francisco?
Fernando Altemeyer Junior – Ele tem, como bispo de Roma, um papel colegial muito importante. É interessante que haja um bom número de indicações que Francisco possa fazer, porque ele não tem muito tempo de pontificado, por questões como saúde, idade e pela perspectiva de uma possível renúncia que assumiu do papa Bento. Ele não pode inventar um número de cardeais porque é preciso que se obedeça ao número de 120. Assim, ele pode seguir e indicar, como fez, pessoas do mundo africano, não pegar mais as sedes cardinalícias como um critério petrino de assunção de cardeais e assumir outras possibilidades. É como no caso brasileiro, por exemplo, em que até agora não colocou Salvador com um posto de cardeal, mas colocou outros personagens e outras pessoas com o estilo Francisco. Não mimético, mas no sentido de sintonia.
Isso tem sido muito valioso e vai, num futuro conclave, repercutir nos dois terços de votos ou pelo menos na metade dos votos para que tenhamos outra vez um papa sintonizado com os novos desafios do mundo, e não uma postura mais tradicionalista ou conservadora.
IHU On-Line – E quais são os limites desse pontificado?
Fernando Altemeyer Junior – Os limites são sempre múltiplos, isso sem considerar que ele tem agora o Donald Trump para enfrentar. Quem precisa de mais, com uma postura tão autoritária, tão vergonhosa para a humanidade? Até parece o retorno de pesadelos, e ainda tem Putin com toda a sua vontade de voltar à antiga Rússia de imperialismos, e a China esperando que os dois se comam para que possa emergir como império do século XXI.
Ainda temos situações culturais que estão a exigir uma grande lucidez. A questão da globalização e mundialização, a questão da internet, a questão do consumo e da cidadania, são todas tensões normais da vida e do planeta, mas que, às vezes, vira uma espécie de sine qua non. Ou se faz isso ou morre. Francisco tenta, com lucidez, enfrentar esses grandes dramas mundiais e também locais e concretos, porque cada povo tem seu drama. Imagine nós aqui no Brasil com o golpe, imagine a questão da Turquia, imagine a Coreia do Norte com aquela loucura. E ainda tem os casos da VenezuelaColômbiaEquadorParaguai, tudo se repete. É um momento que exige uma posição sapiencial difícil.

Inspirando saídas

Depois 40 anos de cristandade, é preciso retomar as intuições de Vaticano II e, no caso da América Latina, de Medellín. Felizmente, o papa é um sábio. Ele vem dessa corrente de teologia mais da leitura dos [livros] Sapienciais, dos Provérbios, do Sabedoria, do Livro de Jó. Mas isso não é uma espécie de resposta para tudo. É um caminho duro. E, internamente, na Igreja, é claro que, depois de 40 anos de cristandade, é preciso retomar as intuições de Vaticano II e, no caso da América Latina, de Medellín – agora em 2018 se comemoram os 50 anos de sua realização –, que a grande parte do episcopado escondeu e até apagou da história da América Latina do ponto de vista eclesial.
Retomar tudo isso é como fazer uma espécie de arqueologia bonita dos caminhos que a Igreja poderia ter avançado e paralisou. Francisco é um filho do Concílio e quer que a gente assuma tudo, a Dei VerbumLumen GentiumGaudium et Spes, os três grandes documentos do Concílio, mas também o diálogo, o aggiornamento, a questão mesma da reforma da Igreja. Para isso, felizmente, está aberto. Mas nem todos da Igreja acompanham o ritmo, a música e nem a vontade de fazer reforma. Tem gente que não quer reforma nenhuma.
IHU On-Line – Como compreender a oposição a Francisco? E como observa a postura dele diante das críticas, como as do grupo de cardeais e da Ordem de Malta?
Fernando Altemeyer Junior – Que reformas sejam mal vistas, não apresenta novidades. É parte da psique humana. Uma grande amiga, senhora da periferia, dona Alaíde Fortunato Pereira, que viveu 102 anos, dizia: “querer o novo eu sempre quero. Mas tirar o velho da minha cabeça é uma imensa ‘dificulidade’”. Nós não queremos o novo. Dizemos que queremos, mas com a idade, resistência, comodismos sempre preferimos atitudes de construir uma espécie de lugarzinho ao sol. E isso foi feito por 40, 50 anos no pós-Concílio, particularmente na Teologia Moral, a partir de certo fixismo de posições.
Obviamente, criamos um clero, nos últimos anos, muito mais voltado para a burocracia. E, também, um certo tipo de padre muito mais feiticeiro do que evangelizador. O padre moderno gosta de ser um sujeito de poder mágico, quer pôr a mão na cabeça, quer holofote na missa, aponta para o cálice e diz ‘eis o mistério da fé’, como se saísse um raio shazam e estivesse lá consagrando a partir de um poder pessoal. Esse modo de ser sacerdote, que volta aos esquemas tridentinos [1], traz uma certa perspectiva do antigo sacerdócio de Melquisedeque [2] que o Concílio Vaticano II tentava superar e fazer do padre um ministro da palavra, um companheiro do povo e, sobretudo, uma espécie de terapeuta da vida, e não simplesmente um terapeuta de milagres, como essas bobagens de missa de cura e libertação. Nem é a missa um sacramento de cura, pois cura e libertação se tem pela confissão e pelo sacramento da unção.
Há uma confusão e, então, quando Francisco assume essa identidade do padre amigo, orientador espiritual, que acompanha o povo nos seus dramas antropológicos, humanos, sexuais, o clero questiona: ‘mas do que ele está falando?’. Esse clero não se vê aí, porque é um clero mágico, artista, cantor de música, um star man. Mas o papa não quer isso. Quer um homem delicado, capaz de acompanhar casais em crise, de conversar como grande companheiro da vida da pessoa. É um homem místico que, como um psicanalista, penetra no ponto mais profundo da dor humana.

Observar por dentro da alma

Francisco é muito marcado por Dostoiévski, que é seu grande literato de pensamento, mas também pela pessoa de Jesus, que era um homem que via por dentro da alma. É esse padre que a modernidade precisaria para sair de seus traumas, de suas loucuras e doidices sexuais. Por 40 anos, esse padre não foi formado.

Sacerdócio sem escuta

Há alguns que têm essa perspectiva por conta de alguma qualidade profissional, um padre psicólogo (como exemplo penso no padre Edênio Reis Valle, um grande professor aqui de São Paulo); ou algum outro muito sensível, como Júlio Lancelotti, que vai acompanhando a pessoa concreta que está diante dele; ou como o meu grande mestre, dom Luciano Mendes de Almeida [arcebispo de Mariana, falecido em 2006]. A pergunta central de dom Luciano era: ‘em que posso lhe servir?’. Hoje, nenhum padre fará essa pergunta porque vai arrumar incomodações e ele não vai saber responder quando a pessoa disser ‘olha o que está acontecendo no estado do Espírito Santo, olha minha família, olha a situação da sexualidade’.
A única pergunta que se faz, hoje em dia, é: ‘o que vocês podem fazer para mim? Como vocês vão me receber bem na paróquia? Que horas vão me entregar a chave para eu controlar o poder?’. E Francisco propõe justamente o inverso disso em Amoris Laetitia, em Evangelii Gaudium. É exatamente uma revolução, no sentido da palavra mesmo, colocar o de baixo acima, inverter e até subverter num certo sentido. Mas sempre colocando o evangelho acima, o amor, a sensibilidade, a compaixão. Afinal, a palavra dele é misericórdia como punctum dolens, como o ponto exato em que precisa colocar a agulhinha da acupuntura. E para isso precisa ser um bom acupunturista, saber bem as técnicas de colocar no lugar certo para não criar dormência e para fazer estímulos ou para cuidar das dores.

Limitações interpretativas

Nós precisamos ler esses textos nessas perspectivas. Por isso o quarteto maravilha dos cardeais reacionários – com três já eméritos, só o cardeal Burke está na ativa, que é a fina flor do reacionarismo americano – se posicionou contra. E, na carta que apresentaram, eles não conseguem pensar em uma chave moderna e pós-moderna porque são prisioneiros de um discurso teológico que não dialoga com a pessoa que está na frente deles. Eles lançam dogmas, normas e põem as suas perguntas para o papa como se estivessem também querendo colocá-lo na “cadeirinha de Galileu“. Só que o papa diz: ‘não sou eu que estou na cadeirinha. É a cultura moderna, são as pessoas que estão esperando uma nova palavra’.

Um novo cristianismo possível

A incompreensão, especialmente com o texto Amoris Laetitia, é uma incompreensão com a realidade deste momento, dessa guinada antropológica do mundo. Francisco, e alguns bispos no mundo, estão percebendo que é preciso uma nova terapêutica, uma nova mensagem, uma nova linguagem, um novo cristianismo possível. Há, nesse sentido, um belo texto de um padre chamado Roger LenaersOutro Cristianismo é Possível – a fé em linguagem moderna (São Paulo: Paulus, 2010). É a fé em linguagem moderna. É isso que estamos vivendo. Assim, há uma tensão, em si, salutar.
Não tem nada de errado em os cardeais exprimirem ideias contrárias às do papa, embora não devessem. Ainda há outros grupos, ou os grupos a que esses cardeais estão ligados, pois não há só esses cavalheiros, há outros que estão quietinhos, mas que estão na mesma sintonia. Esses não aplaudem, não criticam Francisco, mas estão torcendo para que passe logo para voltar aquela tranquilidade. É uma tranquilidade falsa, mas de uma cristandade em que eles se acham senhores do bem e do mal, da verdade constituída em textos.
O importante é ter clareza de que a verdade não é texto, a verdade é amor, é movimento. É isso que estamos vivendo. Diria que é um bom momento para a Igreja; infelizmente Francisco tem que aguentar o tranco. Por sorte, o papa Bento disse recentemente, ele, o papa emérito, que está rezando cada dia mais para que a reforma de Francisco dê certo. O próprio Bento, que é o representante máximo no uso desses grupos reacionários, não está com eles porque percebeu que é preciso realmente que a Igreja assuma em 2017, 2020, 2030 um novo rosto. Senão, perde sua eficácia histórica, seu valor e até sua identidade cristã.
IHU On-Line – O senhor falou brevemente, mas queria voltar a um ponto: como avalia a recepção a Amoris Laetitia? E como compreender as resistências?
Fernando Altemeyer Junior – Com relação ao Brasil, percebo que as dioceses, os bispos, as paróquias vêm fazendo muito lentamente uma recepção. Afinal, dia 19 de março vai fazer um ano de sua publicação. É um documento vasto, mas ele já vinha de uma reflexão longa, porque é fruto de dois grandes encontros episcopais do Sínodo da Família. Trata de temas que são eles próprios hipercomplexos, tanto no sentido de difíceis como no sentido da perspectiva de Edgar Morin, pois exigem tessitura, articulação.
Família é o tema central, mas embutida no documento está a sexualidade. A Igreja, até hoje, nem conversa com [SigmundFreud. Imagine o atraso. Outro assunto que está lá é o olhar evangélico, que é difícil, pois Jesus é alguém situado, assim como os próprios evangelhos, na cultura hebraica. O que pensar da cultura ocidental moderna? O que pensar dos avanços de dois mil anos de transmutações simbólicas, culturais, linguísticas? E, ainda, teologia moral, que é a questão derradeira que está levando a esse quiproquó.
É um documento que exige uma recepção de mentes mais abertas, mais qualificadas e de debates mais profundos. Há bispos no Brasil que dizem que Amoris Laetitia é o de sempre, que não mudou nada. Mas quem lê com atenção percebe que não é nada disso. Também não é um rompimento de toda a tradição e reflexão, porque o papa também não poderia apresentar algo tão inovador que quebrasse toda a sacramentalidade do matrimônio, toda a tradição vivida do amor como critério moral. De outro lado, ele coloca questões que são atuais, como a homossexualidade, a questão do divórcio nas sociedades ocidentais, a questão da pedofilia e alguns temas dramáticos de uma sociedade doentia e patológica – tais como enfrentar o doente, o machucado, as pessoas envolvidas, as famílias que vivem esses dramas -, as outras formas de famílias presentes hoje no mundo – e não estamos falando só de homossexualidade, pois o Brasil tem um número gigantesco de pessoas monoparentais por diversas circunstâncias.

Questões na mesa

O documento [Amoris Laetitia] está sendo recebido de modo muito lento. Poderia haver maior empenho nas paróquias para ler, acompanhar, especialmente na pastoral familiar
O documento está sendo recebido de modo muito lento. Poderia haver maior empenho nas paróquias para ler, acompanhar, especialmente na pastoral familiar, e enfrentar essas questões de forma direta e serena. O grande ponto é que, como o papa coloca na mesa as questões desnudadas, as pessoas levaram um susto. Antes, se ficava apenas numa espécie de discurso genérico, heteronômico, lá do céu, ou seja, o padre não fala, a gente finge que não ouve e também não comenta, por exemplo, assuntos como pílula e camisinha.
Quando na vida íntima e cotidiana as pessoas vão discutir esses temas de forma mais profunda ou necessária, constatam que a moral católica está longe de conversar. Há debates que hoje não ocorrem na Igreja porque se entrou na zona de penumbra, uma espécie de purgatório moral. Ninguém fala, não existe, mas existe. Então, hoje as questões de Freud, eros, libido, morte, sexualidade para a vida, sexualidade para a morte, ainda não foram discutidas entre todos os atores das famílias, das dioceses, dos pastoralistas etc.

Diálogos sobre sexo

Imagine se um dia vamos discutir Wilhelm Reich [3] e a questão do orgasmo, ou Simone de Beauvoir, agora duramente atacada pela questão de gênero, que falou a frase lapidar nos anos 1940: ‘ninguém nasce mulher, se faz mulher’. Ninguém nasce homem, se faz homem. Descobriu a conexão fundamental entre genoma, biologia e cultura, porque nosso sexo não é uma dimensão restrita de uma das dimensões naturais. Ele é extremamente complexo com a mente, inteligência, coração e com o contexto em que vivemos. Por isso acredito que o documento em si é algo realmente riquíssimo.
Seria muito bom lermos o documento primeiro, antes de xingar. O ‘não li e não gostei’ é atitude do ignorante. Precisamos dar um salto: ‘li, compreendi, posso até divergir – até porque o documento tem uma série de questões que vão exigir uma perspectiva personalista –, mas entendi seriamente o que está dito’. Estamos nesse momento. Passado um ano, é preciso tomar o documento a sério e ler cabalmente da primeira à última linha, riscar, rabiscar, questionar e confrontar com as experiências humanas que cada um de nós vive, pois a sexualidade é um mistério para cada um de nós. Nenhum de nós sabe bem qual é sua sexualidade, mas também em nossas famílias, nossos parentes, também nas nossas comunidades.
Tudo isso é difícil, mas muito importante. E o cristianismo, Jesus em especial, tem uma belíssima mensagem a dizer sobre a sexualidade, que Agostinho pegou em um ponto e, depois, perdeu em outro. ‘Ama e faz o que quiseres’. Essa é a chave. Depois Agostinho perdeu essa perspectiva, porque ele e São Tomás começaram a bater em cima das mulheres. Mas ele tinha descoberto a chave, que é da sensibilidade, de verificar que a erótica é o motor do mundo, mas também é o motor de Deus. Não há nada de errado no eros, não há nada de errado na sexualidade humana, claro que no contexto em que ela tenha esse valor e esse paradigma que é o da felicidade, da solidariedade, do bem maior. Senão, a sexualidade em Amoris Laetitia também vira uma camisa de força como foi Humanae Vitae, como foram os textos antes do Concílio.

Livres e fiéis em Cristo

Tive como professor um grande redentorista, e líamos muito as grandes obras de Teologia Moral de Bernhard Häring. O título do livro dele que nos inspirou é Livres e Fiéis em Cristo (São Paulo: Paulinas, 1979). Esse é o programa moral, essa é a Teologia Moral. Francisco, no fundo, em Amoris Laetitia, não vem trazer uma novidade, mas retomar essa reflexão feita por estes grandes moralistas.
No Brasil, o maior deles é o frei Carlos Josaphat, que é um gênio nessa área, mas pouca gente lê e está preparada para ir fundo nessas questões, o que também é um dilema na Teologia Moral porque temos poucos moralistas. Há até uma sociedade e participo dela, mas é muito circunscrita ao debate interno. Precisaria colocar isso no debate público, nas redes católicas. Nesse sentido, as redes católicas não prestam um serviço ao debate moral, pois ficam conversando tautologicamente o já sabido enquanto poderiam, de maneira lúcida e serena, discutir estes grandes temas com estes grandes pensadores e com as famílias, com mulheres, com homens, com as crianças, com os jovens para que fossem os protagonistas desse debate, e não somente com os padres celibatários ou com os bispos que não são casados.
Ainda sobre o tema, gostaria de indicar um livro do João Décio Passos, que é uma leitura de Amoris LaetitiaAlegria do Amor – das sementes aos frutos (São Paulo: Paulinas, 2017).
IHU On-Line – Que oposição a Francisco é essa, que parece atravessar os muros da Igreja – vide o caso dos cartazes contra o papa espalhados na Itália?
Fernando Altemeyer Junior – Quem publica alguma coisa sem assinar é covarde, portanto não deve ser assumido, embora tenha ido para as ruas. Mas foi para a rua sem ser público. A rua é um espaço do público, mas na hora em que você publica algo que não assume, significa que não tem nem convicção moral nem autoridade para apresentá-la. Então, são grupos internos da Igreja e talvez alguns até manipulados por gente de fora da Igreja – há quem questione quem teria financiado isso [os cartazes contra o papa], senão grupos fascistas e de ultradireita americanos.
Aliás, quem é ultrafascista já deixou de ser católico faz tempo, porque o cristianismo não coaduna com o fascismo. Sempre dissemos, na história, que não coadunava com o comunismo, mas ele é completamente contraditório com a idolatria fascista. Por isso o mal de Mussolini e de Hitler nasceu destas campanhas que Goebbels usava sempre para criar o mal-estar a partir dos tais cartazes, das tais nominações de um bode expiatório. Esse grupo está usando a mesma forma diabólica de colocar o papa como aquele que não une, quando eles é que estão fazendo a diabolização, no sentido daquilo que corta o símbolo e que corta a unidade. Para mim, isso vai passar como fumaça, porque mostra que há inimigos, mostra que eles não são honestos, mostra que Francisco está no caminho correto porque ele mostra a cara.
IHU On-Line – Em geral, Laudato Si’ teve uma recepção positiva à época de sua publicação. Entretanto, premissas defendidas ali se opõem a discursos como de Donald Trump, em ascensão neste momento no mundo. Como compreender as tensões e as implicações entre estas duas visões de mundo?
Fernando Altemeyer Junior – Esse é um momento histórico que vivemos dentro do neoliberalismo, é fruto disso. O neoliberalismo como sociedade capitalista precisa esgotar todos os bens por conta da expansão do mercado. Esse mercado precisa vender tudo e transformar tudo em mercadoria, portanto não há nada no planeta que não seja objetivável, mercantilizável, e com isso água, ar, bens que seriam utilizados de formas universais e vitais, são vistos por capitalistas, por empresas, por pessoas até do povo, como objeto. Até as pessoas vão no pacote, sexualidade é um fetiche, uma mercadoria, as crianças são vendidas, o tráfico humano, as mulheres, o sexo e, até mesmo, daqui a pouco, as famílias vão começar a ser vendidas como produto. Por isso a luta de Francisco, que é bem profunda.
Laudato Si’ é muito mais lida do que a própria Amoris Laetitia, embora sejam temas diversos, porque em Laudato ele fala que tudo está interligado. É essa a questão chave, ou seja, uma nova antropologia. É uma nova teologia da criação. Ele volta aos clássicos, a São Francisco de Assis, também a São Boaventura e antigos padres da Igreja para ver o mundo com o olhar de Deus, o Deus trindade e não simplesmente do Pai, do Filho e do Espírito Santo como unidades quebradas. Não é mais um cristocentrismo, é nova perspectiva da vida, do mundo, da natureza, parte desse cosmos que somos, mais o princípio antrópico – todos pensamos e, portanto, temos responsabilidades sobre os outros seres vivos – e somos os mais frágeis dos seres vivos.

Mídia

A mídia também percebeu, mas ela sabe que se disser que Francisco está certo, não vende mais mercadoria
mídia também percebeu, mas ela sabe que se disser que Francisco está certo, não vende mais mercadoria, não é mais a sacerdotisa do capital, vai perder o emprego dela. E ela hoje é essencial para fazer a cabeça de todos. Veja o exemplo da Rede Globo de televisão, que faz a cabeça de todo mundo. O Brasil é mandado por aquela família do Rio de Janeiro e ninguém vai para rua derrubar o Temer se a Globo não mandar. Estamos na mão de um grande capitalismo transnacional, comandado por grandes grupos econômicos do capital andorinha que se exprime ou pela coerção das armas, na guerra, e Trump e Putin são a expressão disso, ou pela mídia que mantém a multidão domesticada ou, como diria Zygmunt Bauman, cegos morais.

Perspectiva que ressoa

Essa luzinha do papa Francisco, quase que como uma lamparina no meio do mundo, ressoa. Francisco, assim como o Greenpeace, como alguns profetas como Bauman, como [GillesLipovetsky, percebe que estamos num momento central de decisão, sabendo que ninguém nos salva se não salvarmos o planeta e vice-versa. Esse é o paradoxo em que estamos metidos. E parece que o mundo sabe da importância de Francisco, ou de pessoas como ele. Não é só a figura dele, poderia ser o patriarca de Istambul, Bartolomeu I, por exemplo.

O veneno que entorpece

Então, há pessoas no mundo que estão sintonizadas, mas é uma minoria. Numa expressão de Dom Helder Câmara, diria que são minorias abraâmicas. Todo mundo escuta, sabe que trazem uma verdade profética, mas ninguém tem coragem de seguir porque significa mudança de hábitos. Eu mesmo preciso ir mais a pé até a universidade para perder minha barriga, mas somos muito comodistas. O capitalismo é um veneno, ficamos drogados com isso, enlouquecidos, e por isso somos sempre levados ao consumo. E o hedonismo ainda nos diz que esse prazer fugaz vai nos dar felicidade. Nós batemos palmas e, depois, morremos tristes, com úlcera, com câncer, em decorrência do consumo dos produtos que estão contaminados. Estamos nesse momento em que a única coisa que precisamos é, na palavra de João Batista Libânio, de lucidez. Mas nesse momento há loucura. Então, o lúcido virou louco e o louco parece ter virado lúcido.
IHU On-Line – A Igreja no Brasil teve participação ativa na conjuntura nacional, vide as experiências das Comunidades Eclesiais de Base. Como avalia a participação da Igreja no cenário nacional hoje?
Fernando Altemeyer Junior – Antes, me permito fazer um gancho com a ecologia e os bispos do Brasil para ir entrando nessa questão. Por que a Laudato Si’ penetrou mais na Universidade de São Paulo – USPUniversidade de Campinas – Unicamp, nos ateus, nos grupos dos movimentos sociais, nos sem terra do que nas paróquias? Porque, dos bispos brasileiros, há hoje no máximo uns 20 – ainda sendo bem generoso no número – que têm conexões umbilicais com as causas ecológicas. São patriarcas como Pedro Casaldáliga, que ainda estão vivos, mas bem velhinhos, outros mais novos como o bispo de São Gabriel da Cachoeira, o gaúcho dom Edson DamianPedro Luiz Stringhini, de Mogi das Cruzes, que faz marchas e lutas para salvar a reserva ecológica da Mata Atlântica e é um verdadeiro profeta. Ou seja, pode-se contar nos dedos os bispos nos estados que adotam as causas da ecologia integral, a causa dos movimentos ecológicos como a própria postura e que colocam isso como uma prioridade pessoal.
Assim, claro, o povo olha para o bispo e pensa: ‘ah, ele não dá bola para isso, por que eu vou dar? Não fala nunca sobre Laudato Si’, por que vou ler?’. Então, os de fora da Igreja leem, aplaudem, compreendem. No curso de Arquitetura da USP, por exemplo, se estuda isso no primeiro ano como nova maneira de pensar o espaço público dentro da perspectiva de Francisco da integralidade. Já nas paróquias ninguém nem lê a encíclica porque os bispos não estão conectados.
Agora, se perguntar quem dos bispos apoia os carismáticos, vai encontrar uns 200. Assim, claro, a Renovação Carismática ganha espaço. Se perguntar quem é do catecumenato, verá que são mais uns 200 e assim o catecumenato ganha expressão. E catequese? Nossa, daí chegamos a uns 400 e toda a catequese é sempre aplaudida. Agora, quem é o bispo que está ligado à questão ecológica? Vinte, dos quase 500. Aí compreendemos por que estamos diante de um drama que faz com que, entre a fala e a realidade, se dê um descompasso tremendo.
IHU On-Line – E a Igreja no Brasil?
Fernando Altemeyer Junior – A Igreja no Brasil ainda pode continuar sendo uma esperança. Primeiro do ponto de vista estatístico, mesmo que tenha caído muito o número de católicos nos últimos três anos segundo pesquisa do Datafolha. Ainda assim, se metade dos cerca de 200 milhões de pessoas for católica e tiver pelo menos alguma pertença dos múltiplos estilos de Igreja, ainda teríamos cerca de 100 milhões. O que significa que mais ou menos 10% dos católicos do mundo estão no Brasil. Isso é uma esperança, uma responsabilidade que é muito valiosa.
Para além disso, com a presença de Francisco e as novas sagrações episcopais e o novo estilo que ele tem imprimido na evangelização, temos visto ressurgirem algumas das flores primaveris do Vaticano II. Veja a Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – desde 1964, é uma dádiva o Brasil ter uma campanha quaresmal. A iniciativa foi copiada pela Alemanha, pela Suíça; vivi na Bélgica e vi como tinham no Brasil o modelo de campanha de quaresma. E veja, por exemplo, o tema deste ano, tratando a questão dos biomas, que faz com que a gente relembre toda a questão dos biomas brasileiros e da importância de preservá-los. Só isso como um grande tema de olhar cristão no Brasil é essencial. Nesse ponto, acho que a Igreja no Brasil continua sendo uma grande esperança.

Silêncios precisam ser combatidos

De outro lado, há silêncios. Precisariam os bispos, as Igrejas, os leigos assumirem esses silêncios para superá-los. A psicanálise explica que o silêncio diz mais do que a fala. Por exemplo, a questão dos afro-brasileiros, um povo sempre muito marcado e colocado em segundo plano na Igreja e nunca valorizado. E veja: a riqueza cultural do Brasil é negra. Como pode, ainda, uma Igreja estar marcada, especialmente nos seus postos de comando, só por brancos? Só tem mil padres negros dos 22 mil. Só há uns 12 ou 15 bispos negros dos atuais 393 bispos diocesanos. Se considerarmos o episcopado, ainda piora a situação, pois dos 476 bispos podemos considerar que há uns 20 bispos negros. Entre as freiras a situação já é melhor. Das 30 mil que temos no Brasil hoje, mais ou menos 15 mil são negras. Isso é uma questão que precisa ser trabalhada com maior seriedade, pois são as nossas raízes culturais. A cultura, as raízes são negras, mas a Igreja é branca. E quanto a isso há um silêncio, um descompasso brutal.
Outra questão é o aumento vertiginoso dos sem religião. Todo mundo fica falando e especialmente os bispos estão preocupados com a questão pentecostal, ou seja, o avanço das igrejas evangélicas pentecostais. De fato houve um grande aumento: dos 26% recentes, hoje estaríamos perto dos 30% da população brasileira dentro dessa chamada quarta onda pentecostal. Veja que são 30% dos 206 milhões, um belo número inédito na história brasileira. Mas, às vezes, os bispos, as igrejas, as comunidades não estão atentos ao afastamento religioso, à secularização, à não religião e também, dentro desse bloco, ao ateísmo.
Os sem religião hoje já são 14% e há poucos anos eram 6%. Ou seja, mais do que dobrou, enquanto os pentecostais vão crescendo de ponto em ponto. Há até alguns analistas que acham que já teriam até chegado e batido no teto, portanto a queda católica teria batido no piso. Ficaríamos com 50% de católicos, os crentes chegariam a 30 ou 35%, mas para mim é importante perceber como os jovens estão abandonando as Igrejas. Não Deus, mas certamente a religião. Isso é muito evidente e não está sendo assumido de forma pastoral. Ao jovem universitário, se fica oferecendo catequese do já católico. Ou seja, dar mais comida para quem já está gordinho. Ele não quer essa comida e quer discutir até se não preferia água a alimento sólido ou outro tipo de construção mística e espiritual e menos religiosa.
Esses estão entre os maiores dramas e são, também, os maiores desafios para o futuro do Brasil. É preciso assumir a cara de seu povo e encarar a forma como o jovem pós-moderno não se assume religiosamente, numa outra maneira de pensar Deus, sociedade, religião que não é fechada à transcendência, mas não aceita a linguagem que a Igreja Católica construiu desde o período colonial e que está esperando uma nova mensagem. Mas o pior é que esse problema nem está posto. É isso que me incomoda.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Fernando Altemeyer Junior – Este ano, o desafio do ecumenismo está posto, porque nós estamos convidados a celebrar os 500 anos da Reforma com as igrejas luteranas. Que a gente celebre a intuição de Martinho Lutero e que a graça seja a motivação das nossas ações. Sola gratia é a frase maior da Reforma Luterana e é para nós também a palavra de esperança no futuro. Não temos uma contradição com essa palavra, temos uma sintonia e precisaremos superar as divergências, os ódios, as guerras, as intolerâncias com os irmãos evangélicos e construir essa ponte neste ano. Isso é algo que eu estimaria como o maior presente do século: igrejas mais unidas. O amor de Cristo nos uniu. Precisamos dizer isso, os católicos para os luteranos e os luteranos para os católicos nas igrejas.

Fonte: CNLB

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Jovem, bela e repórter

Mara Narciso

Desde quando um branco tem por principal bandeira defender os negros, ou um poderoso veste a camisa em defesa dos que nada possuem, ou um homem lute pelos direitos das mulheres, ou quem sabe um jovem passe a maior parte do seu tempo defendendo os velhos? Cada qual preserva seus próprios interesses, protegendo suas causas, como fazem os políticos e grupos corporativos. Crianças, idosos e animais não conseguem se defender a contento. É preciso que alguém os salve. E que todas as omissões sejam castigadas.

Ser bonito não exige mérito. É gratuito e fruto do acaso genético. Em todos os quadrantes, ninguém tem dúvidas quando está diante da beleza, a qual é ultra-valorizada. Pelo excesso, a palavra “lindo” perde sua força por ser o vocábulo mais escrito nas redes sociais. De fato, nunca vi uma mulher linda reclamar de sê-lo. Já as feias... Bem, ser feio é uma maldição, tanto que as bruxas são grotescas, e a presença de feiura é associada à maldade. Quem suspeitaria no Brasil que alguém bem vestido e lindo cometeria um assassinato cruel? Pouquíssimos.

Outra palavra que se esvazia, por ser presença obrigatória em homenagens à mãe ou a outra mulher madura é a qualificação de “guerreira”. Falando assim, parece que nenhuma delas vence a batalha. Mulheres podem estar em guerra, para ao fim se tornarem vencedoras. As pessoas feias e as velhas estão em toda parte, exceto trabalhando como repórter na tela da Globo News, uma emissora que não sai do ar. O amadurecimento, o saber, a segurança, a experiência são pontos positivos em qualquer nação, exceto no Brasil, país cuja população envelhece, mas fazer 40 anos é ficar velho. Com a mudança das leis trabalhistas, pergunta-se: quem dará emprego a alguém às vésperas de fazer 65 anos? A televisão é que não dará. Na produção, a experiência conta, mas em frente às câmeras, apenas rostos bonitos e jovens, que não chegam aos 30 anos. E a credibilidade, como fica? Jamais na condução das reportagens, a velha guarda, com maior substância, tem chance quase única nas opiniões.

Enquanto as pessoas continuarem a ter vergonha dos anos que viveram, camuflando suas idades numéricas com obstinação, como se fossem segredo de estado, a desvalorização do velho se petrificará. A mulher, bem mais do que o homem, dono e senhor de tudo, torna-se invisível. Quantas mulheres com mais de 70, casadas com homens de 30 anos recebem deferência dos demais? As mulheres jovens não se importam (?) com homens de corpos decadentes, desde que possam trazer-lhes benefício social, financeiro, intelectual ou outro. No gênero oposto isso também é verdade, mas, enquanto os homens maduros vivenciam o fato com glória, a mulher é jogada na fogueira. O amor não tem idade, assim como o interesse também não. Que cada um faça o que manda a sua vontade ou seu sentimento.

Numa briga, caso um dos contendores seja idoso, isso lhe será jogado em insulto feito munição. A questão não é exigir que se acatem os velhos, amaldiçoando a juventude por ser jovem, ameaçando-a de que um dia deixará de sê-lo. Isso é apelar pelo óbvio, mesmo que muitos se esqueçam disso. Ainda que demore uma geração, é preciso educar as crianças, para a respeitabilidade acontecer. Sem grosserias nem ofensas, mas sem edulcorar a velhice, o velho precisa usufruir os seus direitos, sendo respeitado agora, sem esperar nem um minuto a mais. Partindo dele próprio, ao se dar ao respeito, com o tempo, muito tempo, nossa civilização será civilizada.

31 de dezembro de 2016

Não destrua uma amizade


Mara Narciso

A amizade sem laços de sangue e sem interesse sexual acontece sem marcar hora nem pedir licença. Chega sem fogos de artifício, se estabelece e vai ficando. Não junte a palavra verdadeira à amizade, pois não sendo verdadeira não é amizade. Sem datas e sem referência de quando se formaram os laços, a amizade é espontânea e desinteressada. Quando se repara, lá está ela, com fortes raízes. O querer estar junto, acolher e compartilhar são coisas de amigo. Não há rigidez numa amizade, que pode ser estreita e íntima, ou distante e formal. O regimento não estabelecido serve para todas. O bom amigo naturalmente está presente nas festas e nos pesadelos. Não cobra, porque não precisa. Mesmo quando um amigo some, o outro entende, não julga. Quer falar, quer saber, procura, sofre junto, ainda que esteja longe. O tempo faz a amizade ficar melhor, ainda que os novos amigos tragam um quê de curiosidade, surpresa e até de encantamento. Resgatar amigos desgarrados pelas circunstâncias é uma experiência motivadora, pois quem volta chega com muitos capítulos escritos, ou até um livro completo.

Amizade sincera é o que se quer, pois a sinceridade é gêmea da amizade. Divergir é normal, contudo, caso surja uma discussão fervorosa, com demanda pesada e momentos de exaltação é preciso que os dois sejam sensatos. A apuração com retorno ao tema deve ser cordial e sem pressa, porém sem esperar demais, pois a demora faz guardar maus sentimentos, com ruptura de pontes, e construção de barreiras. Isso sem efeito etílico, pois com a liberação alcoólica o desastre é maior. O limite da fala deve ser guiado pelo bom-senso. Quem se excede precisa buscar a paz. Caso não busque, por presunção, deixando que apenas o outro volte atrás, o relacionamento não é amizade, sendo parceria cujo fim não dói. Já a ruptura de amizade é semelhante ao fim de um casamento.

Muitos que se julgam bons são capazes de gestos infames que destroem qualquer amizade. A língua solta, a traição, a falsidade, a mentira e a injustiça são atitudes que impossibilitam o convívio. Algumas fraturas são irreversíveis, por isso, é preciso ser maleável enquanto houver tempo. Quando ocorre uma briga em que ambos querem ter razão a luz vermelha se acende. Ser flexível, negociador, político e até mudar de opinião são necessidades nos relacionamentos humanos. Há os que fecham portas e janelas e se apegam a certezas endurecidas. Para quem se sinta irredutível, tal loucura o levará a grandes perdas e o pirracento ficará pirraçado. Não saber voltar atrás vem de convicções geradas na juventude, mas por que não mudá-las? As questões morais podem ser pétreas, não você. Não faça das suas ideias algo dogmático. Caso insista nisso, então não reclame. Mas não se humilhe nem insista além do razoável. Isso é para os casos de namoro acabado, quando a paixão permanece num dos lados. Amizade é diferente.

Quem conta um fato da vida quer opinião, não divulgação. Um amigo entende, é solidário, diz o que pensa com educação, quer ser ouvido, mesmo sabendo que uma sugestão não é uma ordem. Conhecer pensamentos diferentes, defesas opostas, areja a mente. Visões novas podem somar e se for conveniente pode-se tirar proveito. Também se pode ignorar, docemente, alegremente.

Por óbvio, manter uma amizade é estar apto a perdoar e a pedir perdão, ter gestos de grandeza, não decepcionar, cumprindo o combinado. Amigo negocia sem traumas, mas pode ser preciso lavar as feridas, para curá-las. Romper machuca, reconciliar traz festa, e que nunca seja esquecida a gratidão. E caso inimigos aconteçam, que sejam poucos e deduzidos apenas pelo afastamento silencioso. E que os amigos vivam bastante, pois a morte de um deles é ferida difícil de cicatrizar.

24 de dezembro de 2016

Migrações: "Leis para a acolhida e não apenas para a repressão"

Cidade do Vaticano (RV) - O Papa Francisco recebeu na manhã desta terça-feira (21/02) os participantes do Fórum 'Paz e Migrações', evento organizado pelo Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, o Scalabrini International Migration Network (SIMN) e a Fundação Konrad Adenauer.
O scalabriniano Alexandre Biolchi é vigário regional da Congregação, representando 7 países: Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Peru, num total de 160 padres e 30 estudantes. Ele é também o coordenador das Rede Scalabriniana de Comunicação e participa do Fórum Migrações e Paz. Ele participa do Fórum e estava presente na audiência com o Pontífice, no Vaticano. 
"O tema da migração não é um tema exclusivamente da segurança nacional, como muitos países hoje o veêm tratando, mas sim um tema que será abordado desde as políticas públicas. Como religiosos, como Congregações, como Igreja, nós sempre defendemos o direito à migração, o direito a migrar".
"A Declaração Universal dos Direitos Humanos fala disso, que todas as pessoas têm direito a se locomover, mas não fala que têm o direito da acolhida. E é isso, justamente, que os Fóruns, os eventos que a Rede SIMN e a Congregação Scalabriniana tentam abordar: não só o direito de ir, mas também o direito de ser acolhido, de ser integrado e poder viver com dignidade como Filhos e Filhas de Deus que somos todos os seres humanos".
"O Brasil sempre teve uma história muito ligada à migração, primeiro como receptor, e agora, nestes últimos anos, de fato, voltando a receber muitos migrantes. Podemos dizer que nos últimos dois anos, a migração africana e a haitiana, que é muito forte nos últimos 5/6 anos, passam pelo Brasil para ir a novas rotas, outros lugares... a migração haitiana está indo para o Chile".
"O grande desafio que temos como Igreja e como Congregação Scalabriniana é poder ajduar a sociedade civil a entender que os migrantes não são aqueles que vêm tirar o trabalho dos brasileiros, mas vêm com o seu jeito e com sua força de trabalho contribuir e com isso, ganhar o sustento para sua família. O desafio é ajudar os políticos do nosso país para que possam elaborar leis que vão ao encontro das necessidades dos migrantes. Não só leis de repressão, mas leis de acolhida, para que se viva e se veja a questão migratória como uma questão de política pública. Neste sentido, o Brasil tem dado alguns passos: a aprovação da nova lei de migração; e todo o trabalho de base, que é sempre um desafio: a acolhida, o acompanhamento jurídico-legal... Nós temos algumas casas de acolhida aos migrantes... Sentimo-nos pequenos diante das necessidades".

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

OCUPAÇÃO - FNL invade 100 fazendas em 12 Estados

O líder da frente, José Rainha Junior, afirma ser "uma das maiores jornadas de luta em ocupações de terra no Brasil"

 
PUBLICADO EM 20/02/17 - 08h38
 
Agência Estado

Integrantes da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL) invadiram cem fazendas em 12 Estados, entre a madrugada de sábado (18) e a manhã desse domingo (19) na ação chamada "Carnaval Vermelho" pela reforma agrária. O líder da frente, José Rainha Junior, afirma ser "uma das maiores jornadas de luta em ocupações de terra no Brasil". Segundo ele, estão mobilizados mais de 10 mil militantes.

Os comandos locais da Polícia Militar confirmavam ocupações em São Paulo, Mato Grosso do Sul, Bahia, Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Mato Grosso e Distrito Federal. Em outros Estados, a PM não tinha sido informada das ações. "As ocupações têm como objetivo chamar a atenção do governo para o descaso com que vem tratando a reforma agrária, que está paralisada", informa nota distribuída pela FNL.

Em São Paulo, ao menos 16 propriedades foram invadidas nas regiões de Itapetininga, Andradina, Araçatuba, Bauru e no Pontal do Paranapanema. Só no Pontal, foram ocupadas dez fazendas.
O presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antonio Nabhan Garcia, disse que a entidade vai entrar com representação civil e criminal contra os líderes da FNL. "Invasão é crime e José Rainha já foi condenado a mais de 30 anos de prisão, no entanto, continua sua atividade criminosa."

Ex-dirigente do Movimento dos Sem Terra (MST), Rainha Junior foi condenado a 31 anos e cinco meses de prisão, em primeira instância, por crimes de extorsão, formação de quadrilha e estelionato. Ele espera o julgamento do recurso em liberdade.


Fonte: http://www.otempo.com.br/capa/brasil/fnl-invade-100-fazendas-em-12-estados-1.1437965

domingo, 19 de fevereiro de 2017

“Que o Senhor nos dê a graça de poder dizer: ‘Terminou a guerra’”

Santa Marta: “Que o Senhor nos dê a graça de poder dizer: ‘Terminou a guerra’”

Queridos irmãos e irmãs, nós cristãos devemos ser promotores da paz que cria pontes de comunicação, de ajuda e solidariedade. Que as sirenes anunciam sempre que a vida venceu a morte porque Cristo reina em nosso coração. Somos chamados a ser embaixadores que anunciam a boa nova de Cristo na realidade do amor partilhado. Precisamos derrubar as barreira que levam a desunião e ódio, mas se estivermos unidos a Cristo, com certeza vamos promover o amor em todos os lugares. A cultura da morte será substituída pela cultura da vida,
O cristão não pode ser fechado e triste, pois quem dá abertura a nós é a graça santificante de Cristo e ela nos dá uma alegria plena. Que a paz de Cristo reine em todos os corações. (Jose Benedito Schumann Cunha)



Posted by Anita Bourdin on 19 February, 2017

Santa Marta 16.02.2017 © L'Osservatore Romano
“Que o Senhor nos dê a graça de poder dizer: ‘Terminou a guerra’” : é o desejo expresso pelo Papa Francisco na conclusão da sua homilia diária par na capela do Casa Santa Marta no Vaticano nesta quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017. A Rádio Vaticano publicou trechos. O Papa pede um exame de consciência para cuidar de a pomba da paz na vida cotidiana.

O Papa Francisco relatou um episódio de quando era criança: “Recordo quando começou a tocar o alarme dos Bombeiros, depois nos jornais e na cidade… Isto se fazia para atrair a atenção para um facto ou uma tragédia, ou outra coisa. E logo ouvi a vizinha de casa chamar minha mãe: ‘Senhora Regina, venha, venha!’ E minha mãe saiu, assustada: ‘O que aconteceu?’ E a mulher, do outro lado do jardim, disse: ‘A guerra acabou!’, chorando”.

“Que o Senhor nos dê a graça de poder dizer: ‘Terminou a guerra’ e chorando. ‘Acabou a guerra no meu coração, acabou a guerra na minha família, acabou a guerra no meu bairro, acabou a guerra no meu trabalho, acabou a guerra no mundo’. Assim serão mais fortes a pomba, o arco-íris e a aliança”.

“É um trabalho de todos os dias, porque dentro de nós ainda existe aquela semente, aquele pecado original, o espírito de Caim que por inveja, ciúme, cobiça e desejo de dominação faz a guerra”, observou o Papa Francisco e destacou a responsabilidade de cada pessoa: “Nós somos custódios dos irmãos e quando há derramamento de sangue, há pecado e Deus nos pedirá contas” e “hoje no mundo há derramamento de sangue. Hoje o mundo está em guerra. Muitos irmãos e irmãs morrem, inclusive inocentes, porque os grandes e os poderosos querem um pedaço a mais de terra, querem um pouco mais de poder ou querem ter um pouco mais de lucro com o tráfico de armas. E a Palavra do Senhor é clara: ‘pedirei contas do vosso sangue, que é vida, a qualquer animal. E ao homem pedirei contas da vida do homem, seu irmão’. Também a nós, que parecemos estar em paz aqui, o Senhor pedirá contas do sangue dos nossos irmãos e irmãs que sofrem a guerra”.

O Papa tomou a imagem da pomba da paz retornando à Arca de Noé e sugeriu um exame de consciência: “Como proteger a pomba? O que faço para que o arco-íris seja sempre um guia? O que faço para que não seja mais derramado sangue no mundo?”: Todos nós, reiterou, estamos envolvidos nisto: “A oração pela paz não é uma formalidade, o trabalho pela paz não é uma formalidade”. E relevou com amargura que “a guerra começa no coração do homem, começa nas casas, nas famílias, entre amigos”, e depois vai além, a todo o mundo. “O que faço, eu, quanto sinto no meu coração ‘algo que quer destruir a paz’?”

“A guerra começa aqui e termina lá. Vemos as notícias nos jornais e na TV… Hoje, muita gente morre e a semente de guerra que gera inveja, provoca ciúmes, a cobiça no meu coração é a mesma coisa do que a bomba que cai num hospital, numa escola, matando crianças – é o mesmo. A declaração de guerra começa aqui, em cada um de nós”. Por isso, pergunto: “Como custodiar a paz em meu coração, em meu íntimo, na minha família?”. Custodiar a paz, mas não só: fazê-la com as mãos, todos os dias. E assim conseguiremos fazê-la no mundo inteiro.”

Para o Papa, é aí que vem a paz que o cristão pode receber em seu coração : “O sangue de Cristo é o que faz a paz, mas não o sangue que eu faço com o meu irmão” ou “o que fazem os traficantes de armas ou os poderosos da terra nas grandes guerras”.