Mendigos
POR Ciro dos
Anjos
Naquele
tempo, a cidade era pequena. Dizia-se que contava cinco mil habitantes, para
que a rival Teófilo Otoni não a suplantasse.
No
recesso do lar aonde não chegavam forasteiros, os montesclarenses, aceitam,
porém, humilhados, a fria estimativa do oficial do registro civil, que, inimigo
do povo, não concedia à sede do município, mais do que quatro mil almas.
-
“E, olhem lá!”, acrescentava, ameaçador, com que inclinado a reduzir mais ainda
a cifra.
Aparentemente,
nada inquietava a pequena comunidade, a não ser o imprudente desejo de se ligar
à Capital e ao Rio, pela pequena estrada de ferro. Mais tarde, sentiria na
própria carne, como as estradas de ferro, trazendo riquezas e misérias,
roubando o idílico sossego das terras do sertão.
Havendo
a cidade sido plantada à orla da rica faixa de calcáreo, o grão produzia cento
por um, como na terra prometida ao povo de Israel, tinha-se a impressão de que
os frutos do solo davam para todos.
Não
era fácil ao menino descobrir a pobreza escondida, a penúria habilmente
disfarçada naquelas casas em que, se a comida não chegava a faltar – tão barato
era tudo o que vinha das roças – escasseava, entretanto, o dinheiro para o
senhorio, para a conta da farmácia, para as compras da moça na loja. A magra
polenta que se dava, de manhã, aos filhos do vizinho em vez de biscoito ou de
bolo, com o farto leite espumante, não me infundia suspeitas; antes, supunha
eu, ou me fazia crer, que era hábito da cidade distante de onde eles tinham
vindo, um dia, um tanto misteriosamente.
A
aparência, pois, era de que não havia ricos muito ricos, nem pobres demasiado
pobres. A maior parte da população se distribuía pelos muitos grupos
intermediários que vão da pobreza à abastança.
Não
havia indústria, e o comércio adstringia-se às necessidades da reduzida zona.
Uma
lavoura ativa, de pequenos sitiantes formigas, trabalhando o solo fértil.
Desconheciam-se,
então, as monótonas pastagens, que despovoaram a terra mais tarde,
disputando-as àqueles que semeavam o feijão, o milho e o arroz.
A
moderação e a poupança eram impostas pelas circunstâncias: oito dias de viagem
de tropa e pelo menos dois de trem se gastavam no transporte de mercadorias e
forçoso se tornava que o comércio se limitasse às coisas essenciais.
Sem
dúvida, havia cetim e sapatos de duraque para as granfinas e casemira inglesa
para a sobrecasaca dos senhores vereadores, mas o luxo tinha ares de inocência
e não chegava a irritar a ninguém.
De
uma pessoa que se vestia com apuro, dizia-se que era “lorde”, vocábulo que
devia originar-se do inglês lord.
Existiam
naturalmente mendigos e uma tradição de sovinice estabelecera que se lhe desse farinha
de mandioca aos sábados como esmola.
Não
sei onde punham tanta farinha (em cada casa ganhavam um pires) e era razoável
que torcessem a cara toda vez que recebiam nova dose.
O
cego Ventura, de quem os maledicentes diziam ter vista de lince, exasperava-se
quando, na porta de nossa casa, o obsequiávamos com o infalível pires de
varinha.
-
“Ao menos, feijão, para variar!”, rosnava. Em todo caso, aceitava a esmola e,
atirando-a ao saco, ia, segundo as más línguas, pô-la de novo em circulação,
vendendo-a no mercado, através de intermediários.
Os
mendigos usavam placa da Municipalidade e eram pessoas de certa importância na
vida local. Davam, Deus me perdoe, a impressão de estarem perfeitamente à vontade.
Não me lembro de ter conhecido nenhum lamuriento que viesse a maldizer a sorte.
Participavam frequentemente das conversações de porta de farmácia, opinando,
sobre a solução de problemas urbanos e discutindo as posturas municipais.
Citarei,
entre outros, o Braz Tesoureiro, e o Vicente Cego (que, trancado num quarto,
para deixar o vício da embriaguês, fabricou aguardente com duas ou três
melancias que lá achou e foi encontrado bêbado), a Brasilina, também chamada “meu
anjo”, a Custódia.
Alguns
deles não esmolavam às portas. Eram mendigos de qualidade, recebidos nas
cozinhas – ou na sala de jantar, e a quem a dona de casa dava diretamente a
provisão semanal. Tínhamos em nossa clientela cinco ou seis destes, que foram
herdados dos nossos avôs.
Fonte: Páginas
430 e 431 do livro “Montes Claros: sua história, sua gente, seus costumes”,
organizado pelo médico, historiador e folclorista, Hermes Augusto de Paula,
edição de 1960
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