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"(...) A história se repete: a primeira vez como tragédia. A segunda e outras vezes como farsa da tragédia anunciada. (...)" Karl Heinrich Marx (05/05/1818-14/03/1883)

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domingo, 29 de maio de 2016

QUE CULTURA É ESTA - Brasil profundo: quando a esquerda perde o rumo e estupra os seus ideais

A esquerda e o estupro

O estupro de uma jovem de dezesseis anos por um bando de mais de trinta criminosos fascistoides recentemente no Rio de Janeiro revolta e repugna a qualquer pessoa portadora de uma gota sequer de senso de humanidade, de solidariedade, de compaixão, de respeito. Neste sentido, merecem citação e louvor as manifestações de repúdio por parte de milhares, talvez já milhões, de pessoas e agrupamentos de algum modo ligados ao pensamento de esquerda no Brasil. Além de agressão física a mais covarde, o estupro materializa da forma a mais cruel um tipo de opressão, no caso contra a mulher, entre as mais brutais que compõem o cotidiano da classe trabalhadora de todo o país – de norte a sul, de leste a oeste.

Sim, da classe trabalhadora. De lado casos minoritários – mas nem por isso desprezíveis –, as vítimas de estupro no país são trabalhadoras. A burguesia e a pequena burguesia não aparecem em dimensão sequer semelhante ao sofrimento da classe trabalhadora nas alarmantes e crescentes estatísticas de da ocorrência de estupro no Brasil. A exemplo, aliás, no que diz respeito às vítimas de crimes de qualquer natureza.

Repetindo: as vítimas de estupro no país são integrantes da classe trabalhadora.

Esta é a chave do problema. É o caminho para resolvê-lo, para de fato resolvê-lo, e não empurrá-lo para as calendas. E é exata e desgraçadamente isto o que tem feito a esquerda não marxista brasileira, ou seja, a imensa maioria da esquerda brasileira, ao caracterizar o crime de estupro como uma questão ‘cultural’ a ser enfrentada centralmente, portanto, no campo cultural. Escorada nas especulações reformistas do socialista italiano Antonio Gramsci – erguido por este neorreformismo à condição de deus incontestável –, esta esquerda pretende infantilmente combater aquela ‘cultura’ com algo próximo a uma ação continuada de contracultura a que dão o nome luta pela hegemonia ou “luta contra-hegemônica”. Ou seja, querem destruir uma cultura opressora sem a destruição prévia das bases materiais desta cultura opressora. Não vão conseguir nunca. Pelo contrário, e aí está seu traço de ingenuidade infantil, objetivamente estarão contribuindo para fortalecer aquilo que pretendem combater.

Uma certa antropologia conservadora, estruturada sobre a degenerada ideologia pós-moderna amplamente prevalecente na academia brasileira (e mundial, diga-se), dá o nome de cultura a todas as manifestações ideológicas relativas a hábitos, costumes, crenças e comportamentos prevalecentes em determinada sociedade. Em si, nada contra a palavra cultura. Mas seu uso atual – pós-moderno – é agressivamente conservador dado que carrega em nosso tempo a conotação de uma valoração positiva, de algo a ser respeitado. Assim, reificam-se as crendices religiosas as mais opressivas, as condições degradantes de vida, a estupidificação da arte. Tudo é cultura, entoa o coro de acadêmicos conservadores, aproveitadores e oportunistas travestidos de progressistas e, até, de revolucionários.

É em todo este quadro que precisamos entender o estupro. E combatê-lo com a firmeza necessária. E é por esta exigência de combate eficaz, concreto, que temos que trazer a barbárie do estupro para o campo da política. Significa isto dizer que temos que identificar, em primeiro lugar, o que origina e o que mantém o estupro enquanto prática em determinadas sociedade e/ou sociedades. Indo à história e à ciência antropológica digna deste nome, podemos verificar com segurança que o surgimento da opressão sobre a mulher é decorrente do aparecimento da propriedade privada dos meios de produção – terras, gado, instrumentos. É daí que surge tal ‘cultura’, que atravessa vitoriosa todas as sociedades de classes conhecidas, da Antiguidade Arcaica até o capitalismo monopolista atual.

Sem qualquer exagero, podemos dizer: o capitalismo atual é estuprador. Isto porque o consumismo desenfreado essencial à reprodutibilidade do sistema implica inarredavelmente o prevalecimento de uma ideologia geral hedonista, esta, fundada em um nível de egoísmo que simplesmente desconhece a existência do outro. Na mesma lógica, o capitalismo joga na lata do lixo o respeito, a solidariedade, a consideração por este outro e, no limite, o amor. É o que afirma o filósofo Herbert Marcuse em seu ensaio “Para a crítica do hedonismo”, que aqui modestamente recomendamos.

Simples então: para destruir o individualismo-hedonismo e, por extensão, o estupro, é preciso destruir o capitalismo.

Mas não temos condições hoje de destruir o capitalismo, contestarão com um pequeno traço de razão os culturalistas, gramscianos e ongueiros em geral. Mas podemos e devemos resistir às agressões cotidianas com que este capitalismo nos explora e nos oprime. É nesta luta direta contra as manifestações concretas do sistema que acumularemos forças para destruí-lo em um futuro próximo ou longínquo, não podemos prever. 

E o primeiro passo no combate direto e atual ao estupro está na exigência concreta de que o estado – sim, este mesmo estado burguês – o reprima. Isso implica pressionar, fundamentalmente através de manifestações, greves e lutas de rua, o estado no sentido de fazê-lo atender às reivindicações dos trabalhadores, na mesma linha que temos que reivindicar um atendimento médico decente, uma educação decente, salários decentes, transporte decente. Conseguiremos tudo isso no capitalismo? Não. Mas podemos obter vitórias parciais capazes, sim, de amenizar nossas condições de vida no cotidiano.

Que tenhamos, pois, claro que a questão da ‘segurança pública” é uma questão que fundamentalmente diz respeito à segurança dos trabalhadores. A burguesia e a classe média alta estão bem seguras em seus condomínios e edifícios de luxo. Estamos portanto diante de uma questão política e enquanto tal devemos enfrenta-la, ou seja, no campo da força, do confronto, da luta de classes, da pressão sobre o estado burguês. Não será com chamamentos inócuos contra a “cultura do estupro” que vamos combater o estupro que vitima concreta e brutalmente milhares e milhares de trabalhadoras a cada dia no Brasil.
 
A luta contra o estupro não é uma luta cultural. É uma luta política.

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