“(...) a
consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam
marca para o homem a tomada de consciência de que vive efetivamente em
sociedade (...)” [A Ideologia Alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels]
Quando em 12 de
novembro de 1978 nascia Érica Romina Andrade Xavier, João Paulo II tomava posse
como papa e iniciava o seu pontificado inovador, o mundo estava em guerra fria
entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas e os regimes totalitários predominavam em países ocidentais. O que
João Paulo II combateu na sociedade contemporânea como cultura da morte é o que
enfrenta no dia a dia a enfermeira formada pela Universidade Estadual de Montes
Claros (Unimontes), Érica Xavier, desde 2010 quando foi criado o grupo de
cuidados paliativos “Mãos que cuidam” da Fundação Dílson de Quadros Godinho,
antigo Hospital São Lucas.
Constituído por
enfermeira, oncologistas clínicos, cirurgiões oncológicos, médicos
especialistas em dor, psicólogos, assistentes sociais e vários voluntários de
diversas áreas, o grupo alivia as dores de pacientes terminais com câncer ao
oferecer a eles mais vida. “São as mãos que abraçam, as mãos que acolhem, as
mãos que intercedem pelo paciente para trazer qualidade de vida a ele e à sua
família. Trazemos dignidade ao doente para que ele não viva apenas esperando a
morte chegar e sim viva de fato até o seu último suspiro”, esclarece a
enfermeira paliativista, especialista em saúde da família e coordenadora do
grupo.
A Fundação Dílson
de Quadros Godinho é referência no Norte de Minas Gerais no tratamento de
pacientes com câncer, desde adolescentes a idosos. Por dia, o centro de
oncologia da entidade atende mil e 200 pessoas. O grupo de cuidados paliativos
“Mãos que cuidam” é o único atuante na região e, em sete anos de existência,
atendeu mais de 700 pacientes e seus familiares. Atualmente o grupo acompanha
30 pacientes com câncer em estado terminal. Ela ressalta que o trabalho não
deve ser confundido com a eutanásia e os enfermos são orientados a viver em
casa com a família, parentes e amigos íntimos.
“O câncer não
escolhe idade. Não que a incidência de câncer tenha aumentado. Não havia
tecnologias para diagnosticar a doença”, comenta Érica Xavier ao apontar para o
modo de vida pós-moderno como possível causador da doença, como sedentarismo,
obesidade, fumo e álcool. “Faz parte do mundo atual a existência de fast foods,
drugstores (farmácias 24 horas), estresse gerado pelas longas jornadas de
trabalho e as mudanças trazidas pela maneira de viver” na pós-verdade. Antes os
jovens jogavam futebol na rua, saiam para namorar, faziam amizades entre
desconhecidos. Hoje a juventude está na frente do videogame e das redes sociais
virtuais, refém da indústria cultural, exemplifica a enfermeira.
Ela conta como é o
processo em que o doente é transferido do hospital para casa ao citar
recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que indica tratamento
curativo e paliativo. “O paciente inicia o tratamento no hospital. Na ausência
de resposta, de cura, o enfermo é encaminhado aos cuidados paliativos. Aí a
gente cria o núcleo familiar porque a família também adoece junto. Nesse
momento de finitude da doença, alguns sintomas físicos, espirituais e sociais
se exacerbam. Procuramos então controlar esses sintomas”, observa. “Um dos
nossos princípios não é nem prolongar a vida, nem antecipar a morte. A gente
não quer dar mais sofrimento ao paciente. A gente quer oferecer mais
intensidade e qualidade de vida aos dias que lhe restam”, pontua Érika Xavier
ao destacar a sociabilização das pessoas.
“Reinserimos o
paciente socialmente. Procuramos realizar seus sonhos. Já conseguimos mandar
pacientes para a praia, fizemos minirreformas na casa dele, levamos o enfermo
para passear no shopping, jantar em um restaurante”, enumera a enfermeira e
salienta que os cuidados paliativos podem ser feitos em hospitais,
ambulatórios, hospices (serviços em domicílio que acolhem paciente e família
até o fim da vida).
“Montes Claros só
tem os nossos serviços de cuidados paliativos. Priorizamos o atendimento
domiciliar por ser mais humanizado. O paciente é tratado em casa e o óbito
preferencialmente é junto aos seus familiares”, reforça. O grupo “Mãos que
cuidam” já teve que viajar para Bocaiuva e Janaúba, mas sugere que equipes de
saúde do município sejam treinadas e capacitadas para atuar localmente.
“Procuramos sempre estar aprimorando nossa formação em seminários, jornadas
cientificas, palestras”, completa Érica Xavier.
Ela cita o
idealizador do grupo como o grande incentivador do trabalho: é o médico,
especializado em cirurgia oncológica e professor das Faculdades Unidas Norte de
Minas (Funorte), Cláudio Henrique Rebello Gomes. “Ele tinha um tio acometido
por câncer e que gostaria que fosse tratado em casa. O tio tinha dores
terríveis e havia muitas dificuldades para conseguir as drogas necessárias para
o alívio dos sintomas. Diante do sofrimento do ente querido e de outros
pacientes, ele decidiu implantar o grupo na Fundação Dílson Godinho com o apoio
irrestrito da diretoria”, garante a enfermeira e coordenadora do “Mãos que
cuidam”.
O médico Cláudio
Gomes acrescenta que a ideia de desenvolver o trabalho veio com a
sensibilização da sua mãe, Vera Lúcia Athayde Rebello Gomes, falecida aos 53 anos.
Ela fazia uma quimioterapia para combater um câncer no reto e via todo dia a
agonia de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) em sua luta por saúde
digna. Comoveu-se e pediu ao filho para pensar em projetos que pudessem
amenizar essa realidade social. A doença do tio de Cláudio Gomes, que também
era médico, apenas carimbou o ofício de urgência em melhorar a saúde em todo o
Brasil através de medidas simples. Se tratado em casa, o paciente em estado
terminal libera leitos de hospitais e colabora para que o enfermo tenha seus
últimos dias de vida ao lado da família. “Meu
tio tinha câncer no estômago. Tirar morfina de dentro de hospital é quase um
tráfico de drogas”, critica o médico a falta de discernimento governamental e
burocracia excessiva para que um processo mais humano de vida se desenvolva no
país. “O sofrimento foi muito grande, mesmo pagando” caro, confessa. Cláudio
Gomes.
Ele sugere a
leitura do livro “Quando as luzes se apagam”, uma publicação da Loja Maçônica
Antônio Lafetá Rebello. O livro trata “do medo e da angústia deles mesmos [dos
voluntários que lidam com pacientes em estado terminal] de falar da morte de
outras pessoas”. O livro foi publicado, vendido e toda a sua renda destinada à
Casa da Terceira Idade Senhora Sant’Ana, no Monte Carmelo.
O que falta então
é mais piedade por parte do Estado Democrático de Direito Brasileiro. Porque,
de boas ações, o Brasil e os brasileiros já são líderes mundiais há muito
tempo, desde os anos 1500.
Fé em Deus
Conforme
definições de 2002 da Organização Mundial da Saúde (OMS) reforçadas pelo
Instituto Nacional do Câncer, “cuidados paliativos consistem na assistência
promovida por uma equipe multidisciplinar que objetiva a melhoria da qualidade
de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida,
por meio da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de identificação
precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos,
sociais, psicológicos e espirituais”. No Distrito Industrial, em Montes Claros,
esses cuidados paliativos são realidade na casa do Programa “Minha Casa, Minha
Vida” e que agora pertence à evangélica da Igreja “Deus é Amor”, Delma da
Silva, 42 anos, que distribui sua alegria à espera da equipe da revista “Tempo”
e sobretudo da dupla dinâmica do grupo de cuidados paliativos “Mãos que cuidam”
da Fundação Dílson Godinho.
A enfermeira Érica
Romina Andrade Xavier e o técnico de enfermagem Francisco Gomes dos Santos são
recepcionados com festa na sala de visitas da casa. Mesmo na luta contra um
câncer no reto que a priori venceu em 2005 depois de ser submetida à cirurgia e
quimioterapia, Delma da Siva se agarra à sua fé em Deus para combater um câncer
no intestino, diagnosticado em 2006. “Os médicos me explicaram” minha situação.
Mas, “tendo Jesus à frente e com Deus na vida”, permaneço viva. Delma nasceu em
São Paulo. Residiu um tempo em Belo Horizonte. Aos nove anos veio morar em
Montes Claros.
Na juventude,
enamorou-se com Marcos Welu Gonçalves dos Reis e constituiu família: Iara e
Marcos Vinícius são fruto desse amor. A sua filha a ajuda nos trabalhos
domésticos. “Minha família é unida, graças a Deus”, afirma ao reclamar
calmamente de uma asma, o que a faz ter falta de ar. “Posso fazer umas coisas
bem levinhas, mas não serviço pesado. Juliana, minha cuidadora, trouxe alguns
bordados para eu fazer”. Em virtude do câncer, “tomei trauma de quimioterapia.
Gosto de ficar em casa. Tenho trauma de hospital”, declara. Em hospitais, “tem
hora que chega gente pior que a gente e a gente fica impotente diante daquela
situação”, entristece-se. A respeito do trabalho do grupo de cuidados
paliativos “Mãos que cuidam”, Delma é eufórica. Eles “já fazem parte da minha
família. Vocês podem anotar aí. O trabalho é maravilhoso, muito bom. É bênção
essas pessoas em minha vida”, elogia.
O grupo costuma
realizar sonhos de pacientes com câncer em estado terminal. O sonho de Delma
era visitar o shopping e a surpresa aconteceu na época de Natal. “Foi uma
bênção, inesquecível aquele dia. Gostei demais das casinhas do Papai Noel”,
relembra. Ela é convidada agora para passear de avião. Delma não quer. Morre de
medo. “Acho bonito o avião andando lá em cima”. E quanto ao câncer, a fé em
Deus e em seu filho Jesus Cristo é a solução. “Crer em Deus”, testemunha.
Dois anjos
“Fico até
emocionada quando falo. Para mim, foram dois anjos que apareceram em minha
vida. Na fase mais difícil da doença, eles nos auxiliaram. São pessoas que,
além do profissional, sensibilizaram-se humanamente conosco”. O reconhecimento
é de Maria Lúcia Sebastiana de Almeida Viana Mendes ao grupo de cuidados
paliativos “Mãos que cuidam” da Fundação Dílson de Quadros Godinho,
representado pelas pessoas de Érica Romina Andrade Xavier e Francisco Gomes dos
Santos. Foram sete meses de acompanhamento ao paciente Renato Mendes Cardoso,
marido de Maria Mendes. “Liga para o Francisco. Liga para a Érica”, conta a
esposa a reação ansiosa de Renato quando a doença começava a fragilizar a saúde
dele. O paciente passou a se alimentar através de uma sonda. “Teve infecções
várias vezes”, relata emocionada a esposa. “Criamos
vínculo afetivo com a Érica e o Francisco. São pessoas maravilhosas, seres
humanos de verdade”, reforça.
O paciente Renato
Mendes Cardoso sofreu de câncer de próstata com metástase óssea durante 13 anos.
Faleceu aos 80 anos, em 06 de dezembro de 2016. Era trabalhador rural em Manga
e Januária. Comprava e vendia terra e gado. Quase não tinha instrução escolar
(estudou pouco), porém possuía um tino para os negócios de fazer inveja a muito
administrador de empresa. Tinha o temperamento forte, era honesto e
conservador. Teve sete filhos: quatro com a primeira companheira e três com
Maria Mendes, com quem está casado desde 1981.
“Levou a vida
normalmente sempre achando que ia ficar bom. Não ficou deprimido. Só agora nos
últimos meses que ele deu uma baqueada. Estava perto de fazer a viagem” nenhum
pouco aguardada, revela Maria Mendes ajudada pela filha caçula Rosângela Viana
Cardoso. “Dava um pouquinho de trabalho. Chamava sempre a minha mãe. A doença o
fez melhorar como pessoa. Faleceu em casa junto com toda a família. Minha mãe
estava dando banho nele”, recorda Rosângela Cardoso.
Texto-Reportagm:
João Renato Diniz Pinto
Produção:
Revista “Tempo”
Data: 10/02/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário