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Frase

"(...) A história se repete: a primeira vez como tragédia. A segunda e outras vezes como farsa da tragédia anunciada. (...)" Karl Heinrich Marx (05/05/1818-14/03/1883)

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segunda-feira, 30 de abril de 2018

A linguagem popular para doenças não existe mais

POR Mara Narciso
médica endocrinologista e jornalista

A minha mãe Milena Narciso nasceu em 1934 e se formou médica em 1974. Dedicou-se à Ginecologia e Obstetrícia, e, sendo uma mulher observadora e com excelente capacidade analítica, enfeitava a nossa vida com histórias pitorescas de uma linguagem típica. Dizia que seu avô Jason Gero de Souza Lima, comerciante de diamantes e fazendeiro, contava a vida e educava os muitos filhos com ditados populares, coisa que a mãe dela Maria do Rosário de Souza Lima também fazia. Uma “agregada” da casa tinha uma maneira diferente de se comunicar. Quando viu o primeiro caminhão, chamou a minha avó, apelidada Du: “Vem ver, Du, a ‘zelação’. Ela é movida a ‘magnífico’”. Noutra ocasião, a primeira vez em que ela sentiu os efeitos do álcool, falou: “Está me dando uma ‘celebreza’”.

Na meninice, Monteiro Lobato, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos fizeram minha cabeça. Desde então ando de olho nas palavras. As pessoas que não leem falam da forma como entendem. O “eu não assino” é mais comum no meio rural e ainda hoje é alta a incidência de pessoas sem o direito a ler. Nesse mundo analfabeto, não existe cérebro e sim célebro, barrer, regra, “perca”, e outras expressões desconhecidas dos livros. O Word marca todas elas em vermelho.

Na década de 1970, a comunicação no norte de Minas era de boca em boca, por jornal, revista e rádio. A televisão restrita pegava mal. Havia poucas boas estradas e as noticias demoravam a chegar, assim o noticiário impresso do mês passado continuava interessante. O meu Tio Indalício, irmão do meu avô Petronilho Narciso, que morava na fazendinha Aliança, mandava buscar em Montes Claros jornais e revistas velhos. Tudo servia, pois a notícia valia por mais tempo. Meu tio era um homem humilde, de olhos azuis profundos, amoroso, encantador. Junto com ele, ao redor de uma imensa gamela de feijão-catador, nós seus sobrinhos-netos ficávamos abrindo as vagens e conversando nas noites frescas da roça. 

Ali ouvíamos palavras que mal sabíamos o que eram e que adoçavam a nossa vida junto às cantorias e o violão do vaqueiro Chico Faria, irmão do Mestre João Faria.

Por esta porta eu vislumbrava outra cultura.

Quando minha mãe se casou em 1953, foi visitar meu avô paterno Antônio Alves da Cruz em sua fazenda, um lugar ermo, na Serra das Araras, na região de Januária. A viagem foi a cavalo e, pelo caminho, aparecia onça pintada. O choque cultural e de linguagem foi gritante. Parecia outro país. Décadas depois, quando Milena atendia consultas de pessoas da zona rural, mencionava o palavreado da gente dos rincões isolados, um quase dialeto. Nem sempre era fácil decifrá-lo. Regra e perca acima citados são menstruação e aborto. Mãe do corpo é útero, fato é intestino, “botar os bofes para fora” é estar cansado, bolota do olho é globo ocular, “vilida” é mancha branca no olho, “dordói” é conjuntivite, coração “trupicar” é estrassístole, “panarício” é osteomielite, “espinhela caída” é problema no esterno, “dor na apá” é dor na escápula, “xistose” é esquistossomose, “barriga d’água” é cirrose hepática, “fraco do pulmão” é pessoa com tuberculose, provocar é vomitar, câimbra de sangue são fezes hemorrágicas, nascida é furúnculo, acesso é crise de convulsão, bilora é desmaio de fome, avexame é falta de ar, entalo é dificuldade para engolir, encalhado é com o intestino preso, “aquela doença” é câncer.

Atualmente, mesmo gente pouco escolarizada, pelo efeito da comunicação de massa, tem um linguajar apropriado para descrever seus sintomas e suspeitas. Muitos já pensam num diagnóstico, mesmo sem ir ao Google. Surtos de dengue, zika, chicungunha, febre amarela, gripe H1N1 são de conhecimento geral. Poucos desconhecem a importância de procurar o médico caso surja um nódulo no corpo. As mulheres, diante de um sinal ou sintoma querem investigar. Os homens criticam suas companheiras, mas alguns visitam o cardiologista, e, ainda timidamente o urologista. A medicina avança, as pessoas procuram diagnósticos precoces para ter suas doenças curadas ou domadas chamando-as pelo nome universal. Sem apelidos. A precariedade da medicina primitiva ficou para trás.

Sábado, 28 de abril de 2018

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