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Frase

"(...) A história se repete: a primeira vez como tragédia. A segunda e outras vezes como farsa da tragédia anunciada. (...)" Karl Heinrich Marx (05/05/1818-14/03/1883)

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domingo, 18 de novembro de 2018

Catrumano

POR Mara Narciso
médica endocrinologista e jornalista

Distraída, só conheci a palavra “catrumano” em 1993, através do Restaurante Catrumano, na Vila Regina. Depois a cidade teve o “Território Catrumano Bar Cultural”, no Bairro Major Prates, do antropólogo João Batista de Almeida Costa. Sua tese de doutorado foi destacar a importância da cidade de Matias Cardoso no norte de Minas como fonte de alimento na mineração da região central do Estado. Em 2005 foi criada a “catrumania” e o Movimento Catrumano. Desde então, entendo essa palavra como um modo de vida roceiro, um autêntico vivente do sertão seco e violento.


Ildeu Braúna (16/05/1953 - 30/05/2015), registrado Ildeu de Jesus Lopes, foi político, escritor e compositor. Em parceria com Pedro Boi, compôs mais de cem músicas. “A lenda do arco-íris” e “Zumbi” são duas joias que eternizaram seus criadores. Compôs “Tocador de Boi”, com Téo Azevedo, gravada por Sérgio Reis. Em 1977 criou o Grupo Agreste, que ficou conhecido nacionalmente ao fazer parte da trilha sonora da novela “Rosa Baiana”. Morto de pneumonia aos 62 anos, o ex-secretário de Cultura de Montes Claros foi regiamente pranteado, quando amigos cantaram suas músicas de temática rural, na Câmara de Vereadores de Montes Claros, onde foi exposto. 

Escrever no modo de “falar errado”, ser autêntico e convincente, garantindo uma realidade rústica, sem encenação nem exageros, só mesmo para quem é catrumano de nascença e de vivência. Em caso contrário, cai no ridículo ao expor um artificialismo tosco. Pois a imersão na obra “Catrumano”, escrita por Ildeu Braúna e publicada em 1994, possibilita penetrar nas roças ermas de décadas antes, como num filme. A maneira de ele narrar suas histórias, numa linguagem capioa, natural, sem fingimentos, ecoa numa veracidade que possibilita enxergar o matuto falando, contando sua vida, e até mesmo sentir o cheiro de fumo de rolo. Os casos podem ter algo de ficção, mas tomam um ar de legitimidade.

Seu estilo, logo se nota, é coisa para iniciado, talentoso e inconteste escritor de costumes. O linguajar é sertão puro e indiscutível. Quantas vezes ouvimos e ainda é possível ouvir gente daqui falando daquele jeito? O modo de conversar se enraíza de tal forma no âmago de quem nasceu na roça, que mesmo que passe 30 anos numa escola, frequente mais de uma faculdade, entre pós-graduações, mestrados e doutorados, aquilo ali aflora, inesperadamente, porque vem da alma ancestral, sendo de fato a essência daquela pessoa.

Excetuando-se o inigualável João Guimarães Rosa e o seu “Grande Sertão Veredas”, em geral não gosto de ler coisa escrita em linguagem primitiva, mas, para Ildeu Braúna, entrego os meus pontos, devido ao seu dom de recriar. Destaco o conto que dá nome ao livro, e como crítica, faltou uma personagem feminina forte, narrando sua vida.

Ao final, tem um dicionário “curraleiro”, e, entre palavras resgatadas de um passado tão longínquo quanto o sertão norte mineiro, descobre-se o que vem a ser “catrumano”, uma ideia, até então, inconsistente para alguns. De cunho pejorativo, lá estão por sinônimo “matuto”, “bugre”, “capiau”, mas falta “caipira”, como Peré - Luiz Carlos Novaes se referiu a Ildeu Braúna nas orelhas do livro. Entre as curiosidades dos contos em que cada qual expõe sua história, sem travessões nem aspas, vi retornar fantasmas como “acoitou” = se escondeu, “bengo” = capim, “bruacas” = mala de couro cru, “bitelo” = grande, “capado” = porco para engorda, “deu a testa” = discordou, “encafifado” = preocupado, “estropiado” = cansado, “famiage” = toda a família, “gungunou” = balbuciou, “lusco-fusco” = crepúsculo, “mandaíba” = muda de mandioca, “matula” = bagagem, “melar” = embebedar, “pé d’água” = tempestade, “precatas” = alpargatas, “serventia” = utilidade, “surrão” = saco de couro, “tabatinga” = argila mole, “tilanguenta” = esfarrapada.

Após atravessar rapidamente as 82 páginas, treze contos e um glossário, fecha-se o livro já se pensando em relê-lo para se re-extasiar num novo mergulho no sertão. Ildeu Braúna percorreu esse caminho, conheceu essa gente de vida dura, nos lugares ásperos que exigem essas forças e essas vinganças. Só assim para entender o pensar, o linguajar e o agir do sertanejo. Por esse feito, é preciso oferecer fartos aplausos para o mestre.

Domingo, 18 de novembro de 2018

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