POR Mara Narciso
médica-endocrinologista e jornalista
Quem
me disse que eu era escritora foi Waldir de Pinho Veloso, em 2005,
sendo que, desde 2001, ensaiava passos na Literatura, enviando crônicas
aos amigos
virtuais. Tinha publicado meu livro-desabafo “Segurando a
Hiperatividade”, no qual conto a história do meu filho Fernando Narciso
Silveira, portador de TDAH [Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade] e Síndrome de Asperger. Yvonne Silveira,
presidente da Academia Montes-Clarense de Letras, apresentou
meu livro e destacou que a minha escrita não tinha literalidade.
Senti-me uma não-escritora, mas voltei a crer nisso quando Waldir de
Pinho Veloso, também membro da Academia Montes-Clarense de Letras, da
qual passei a fazer parte, afirmou que eu tinha essa
habilidade.
Aos
três anos ganhei lápis para mudar a preferência da mão esquerda para a
direita. Continuei canhota. Aos quatro anos fui estudar no SESC [Serviço Social do Comércio]. Meu
pai, Alcides
Alves da Cruz sabia a importância da escola. Naquela época poucos
frequentavam o Jardim da Infância. No pré-primário aprendi a ler e
escrever. Na vida escolar, muito estudo, cadernos cheios, redações
longas, e na vida, diários, poemas, contos, letras de músicas
copiadas do rádio, fitas e discos. Frequentei o Colégio Imaculada
Conceição dos cinco aos 15 anos e depois o Colégio Marista São José, dos
16 aos 18 anos. No terceiro ano colegial, preparando-me para o
vestibular, copiava tudo que era falado. Cheguei a escrever
atas no colégio, e anos depois, fui secretária da Associação de
Moradores do Bairro Morada do Parque, em 1991/1992. Escrevia o documento
final durante a reunião.
Na
Faculdade de Medicina (1974/1979) copiava o que os professores diziam. No
primeiro ano, com o braço no ar, pois não tinha carteira para
sinistros, copiei
o Gardner Gray O’rahilly, livro de Anatomia, de 830 páginas, ditado de
cor pelo professor Edvaldo Fróes. Ensinava o corpo humano de forma
estranhamente poética, seduzindo os alunos, mesmo quando segurava uma
metade de cabeça, recém saída do formol. Copiar
aulas durou seis anos, com muitas papeletas escritas nos estágios
hospitalares. Depois vieram as Residências Médicas, mais três anos
escrevendo longos relatos dos pacientes. Já trabalhando em consultório,
ia toda semana a Belo Horizonte para reuniões clínicas
e na volta, lembrando-me dos debates, anotava tudo no ônibus. No
hospital enchia papeletas e no consultório escrevia fichas, mantendo
detalhados relatórios, pareceres, encaminhamentos, tudo escrito à mão.
Fora os inúmeros congressos copiados de ponta a ponta.
Em
2006 fui para a Faculdade de Jornalismo, sendo quatro anos copiando o
que os professores ensinavam. Entrevistava e escrevia ao ritmo da fala,
para reportagens
e biografias. Como escrevia o dia todo nas consultas e continuava na
escrita a caneta à noite, a dor de tanto escrever, que já sentia no
braço, considerando que também digitava parte do tempo, agravou-se.
Desde então, passei a ter sessões de Fisioterapia.
Melhorava, mantinha os alongamentos, mas copiava sem parar. O problema
chegou ao seu ápice em setembro de 2016, quando houve perda da força e
da habilidade. Tive de interromper tudo. Enquanto esperava ser criado o
sistema personalizado para informatizar o
consultório, meu filho me ajudou, após autorização do CRM [Conselho Regional de Medicina]. Escrevia
para mim e eu assinava as receitas, pedidos de exames, encaminhamentos e
relatórios.
Depois
de cem sessões sequenciais de fisioterapia e alongamentos diários, além
da constante dança flamenca e Pilates, sinto-me melhor, mas não posso
fazer
quase nada. Não escrevo à caneta, e algumas vezes a assinatura não
confere. O uso continuado do computador completa o estrago. A LER - Lesão por Esforço Repetitivo (ou outro nome que queiram dar à doença) é
restritiva e permanente. Qualquer coisa que eu faça,
sinto dores em ambos os braços, pela sobrecarga compensatória. O uso
dos músculos faz a inflamação dos tendões e nervos se manifestar com dor
e incapacidade. As pessoas não entendem o porquê de eu não conseguir
escrever. Olham o meu braço, que não sangra e
nem mostra nenhuma avaria e riem. Por favor, ajam para se preservar
dessa grave doença. Durante a pior crise eu não segurava o garfo nem a
escova de dente. Eu achei que poderia escrever uma quantidade imensa de
letras, que, enfileiradas, seriam capazes de
ir até a lua e voltar, mas não pude. Sou uma escritora que não
escreve.
Domingo, 25 de novembro de 2018
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