ALVORADA

O SOL NASCE NO LESTE (VOSTOK) E PÕE-SE NO OESTE (EAST)

Frase

"(...) A história se repete: a primeira vez como tragédia. A segunda e outras vezes como farsa da tragédia anunciada. (...)" Karl Heinrich Marx (05/05/1818-14/03/1883)

Fatos

Gripe espanhola-estadunidense no início do século XX... Coronavírus no início do século XXI... Barragem de rejeitos minerários arrasa Mariana-MG em 05/11/2015... Barragem de rejeitos minerários arrasa Brumadinho-MG em 25/01/2019... Anderson Gomes e Marielle Franco são executados no Rio de Janeiro-RJ em 14/03/2018... Médicos ortopedistas são executados com 30 tiros em 30 segundos em restaurante na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro-RJ... (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...)(...) (...) (...)(...) (...) (...) E por aí vai...

domingo, 10 de março de 2019

A Toca e o privilégio

POR Mara Narciso, médica-endocrinologista e jornalista

Georgino Jorge de Souza Júnior recebia minha admiração à distância e já seguíamos um ao outro no Facebook. Em junho eu o vi de perto, assim como à sua esposa Maria Cléo Mendes, na Feirinha do Bairro Morada do Parque. Sentamo-nos à mesma mesa, conversamos, e na sequência, me tornei contato também de Maria Cléo. Tudo parecia bem, mas daí a pouco, no dia 13 de outubro, Georgino Júnior morre de uma doença galopante. Susto enorme e, quanto ao vácuo que se seguiu, tentamos preenchê-lo com a sua história de vida, seu estilo, sua obra.

A sua filha Gabriella Mendes de Souza passou a postar poemas leves sobre o pai, a morte e a saudade, que me encantam. Comecei a juntá-los numa pasta. As obras do professor, artista plástico, escritor e poeta Georgino Júnior, membro da Academia Montes-Clarense de Letras, já estavam num arquivo. É veneração para todo lado, referentes à força do seu talento e à qualidade das suas criações. A música símbolo de Montes Claros, “Montesclareou” é de Georgino Júnior e Tino Gomes.

Então, Maria Cléo começou a escrever cartas públicas ao seu amado, e dentre as coisas que escreveu, foi que as pessoas, vendo-a viúva, falavam que o tempo a tudo apaga. Em protesto, respondia que não queria se esquecer de nada. Isso chamou a minha atenção e passei a fazer reparo no que escrevia aquela pedagoga voltada à psicologia com mestrado e doutorado, dona de loja de produtos indianos, mas principalmente uma mulher de coragem. Eu me curvo diante do tamanho desse amor maduro, num casamento de 50 anos.

Com toda a segurança que tem, Maria Cléo fez inconfidências, referindo que Georgino Júnior teve momento de infidelidade, mas foi totalmente leal. Explicou que ele, pessoa que resistia a publicar livros, apesar do farto material, romance, crônicas e poemas (publicou em muitos jornais, e mesmo tímido, fazia palestras), já doente, tinha deixado tudo pronto para publicar seu livro “Duelo ao pôr-do-sol (poemas de madureza)”. Seriam 70 poemas e outro tanto de ilustrações, para o dia em que completasse 70 anos, porém não deu tempo. Ela cumpriu as determinações dele. Publicou um livro de poemas e obras de arte em edição luxuosa, e fez um lançamento performático no Corredor Cultural. Foram 70 exemplares para compradores selecionados, e lançará uma versão popular. A minha intenção, depois de ver algumas obras de Georgino Júnior, era comprar um quadro dele, e fiz isso, ficando orgulhosa da minha aquisição, que iluminou a minha sala.

Maria Cléo me convidou para tomar um café na Toca, o Ateliê de Georgino Júnior. Marcou para depois do Carnaval, e lá fomos nós, Dulcemar e eu. Entrar lá foi como adentrar num sacrário, momento de respirar fundo e conter a emoção. Compartilhar um pouquinho de tudo que lá existe, foi uma viagem. O lugar, as companhias, os assuntos em comum, o lanche especialíssimo (café, suco de umbu, água saborizada, bolos e pães especiais) foram de sonho. Gulosa, degustei cada instante.

O epitáfio de Georgino Júnior diz “Sou um bicho na toca e a toca sou eu mesmo”. Autorrecluso, desde que se aposentou ficava em casa, um lugar voltado para a arte, pensando a vida, criando, pintando, escrevendo. Num simplismo absurdo, vejo sua escrita como lírica e engajada. E a sua doença, para Maria Cléo, que segue o Kardecismo, foi a fase final da purificação.

Eu tive o privilégio de estar na Toca, sem esconder certa devoção. Vi quadros na parede, livros na estante, manuscritos, rascunhos, pincéis, tintas, cheiro de incenso, mesa posta, e me lambuzei de arte, cultura e uma rapadura macia, com a qual adocei meu café. Sua filha Gabriella foi lá, tivemos uma conversa para guardar num baú e um café das cinco, digno de reis. Modéstia à parte, um luxo intelectual, pois logo se juntou a nós, por alguns minutos, Georgino Neto, mais um filho, e vimos que, além da admiração por Georgino Júnior, temos ideais semelhantes. 

Num tempo de rupturas e superexposição num mundo virtual desconectado da realidade, estar juntos, olhar, conversar, usufruir um ao outro, admirar relíquias, contemplar obras de arte, são regalias raras. Poucos têm uma oportunidade assim. Lamento que Georgino Júnior não tenha participado em carne e osso, ele que é a causa de tudo, do nosso congraçamento, reverência e alegria.

Domingo, 10 de março de 2019

Nenhum comentário: