POR Mara Narciso
Todas
as noites, exceto sábados e domingos, aquela menina tinha de sair com
um dinheiro embolado numa mão e um casco retornável na outra, para
comprar cerveja. Não levava sacola. Era preciso ser Brahma de casco
escuro, trincando de gelada. E que voltasse logo e com o troco certo.
A
menina tinha medo das ruas centrais de Montes Claros, próximas à Praça
Dr. Carlos Versiani, ainda que oferecessem riscos pequenos, se
comparadas aos dias de hoje. Eram mal iluminadas, uma delas de terra,
com vários botecos copo sujo, nos quais era preciso chegar, olhar,
vencer com esforço o batente alto, atravessar todo ele, passando por
entre as mesas, sentir os olhares masculinos sobre seu corpinho magro,
raquítico, no qual já apontava os botões mamários, e chegar ao fundo
dele.
Morena, franzina e tímida, sentia o cheiro dos homens suados, da
pinga e da gordura velha desses locais frequentados por trabalhadores
depois do expediente. O espaço de quase todos eles era estreito, de chão
com ladrilhos hidráulicos e, na entrada, havia vasos mal cuidados com
espada de São Jorge ou comigo-ninguém-pode para espantar o mau-olhado.
Aproximava-se da madeira ensebada do balcão alto demais para ela.
Atrás
dele havia o dono do lugar, tão sujo quanto as demais coisas dali. Após
ouvir o pedido, o homem saia em direção à geladeira roliça e larga, de
oito portas, e, displicente, pegava uma cerveja qualquer, praticamente
ignorando a presença dela. Firme, lembrando-se das exigências, a menina
analisava o produto. Muitas vezes, tinha de rejeitá-lo, agradecer, fazer o
caminho inverso, buscar a saída, voltar à rua escura, e avançar
quarteirões até encontrar outro bar.
Podia
subir quase toda a Rua Dr. Santos. Noutro boteco tudo se repetia. Nova
travessia de mesas, audição de gargalhadas, podendo não ser vista, ou,
pelo contrário, ser olhada, afinal era uma estrangeira num ambiente
inóspito. E então, mais uma tentativa. Quando tinha sorte, podia voltar
para casa, mas, pelo horário, mais de 21 horas, as cervejas boas já
tinham sido consumidas. Após várias entradas e saídas, e já a muitos
quarteirões adiante, tinha de levar alguma coisa, mesmo arriscando-se e
tomar um pito.
Jamais poderia voltar de mãos abanando. Algumas vezes
acertava numa bem gelada, que vinha queimando sua mão. Por sorte nunca a
deixou cair. E se estivesse longe, a cerveja esquentava pelo caminho.
Andava rápido para encurtar a penitência. Além disso, quem esperava, já
estava semi-alcoolizado, tinha bebido desde o final do dia, num desses
mesmos bares, durante 3 horas pelo menos, e desejava continuar
mergulhado num mundo paralelo. Mostrava orgulho por não consumir
cachaça.
Na
hora de ele ir para casa, deveria comprar sua cerveja. A menina nunca
entendeu o motivo disso não acontecer (talvez devido ao casco). Então,
voltava para o apartamento pobre que a família alugava e algumas vezes
não conseguia pagar o aluguel. Subia os 49 degraus de escuridão, pois há
muito as lâmpadas estavam queimadas e ninguém as substituiu. Colocava a
cerveja no congelador, e esperava pela bronca que não tardava. Todos os
dias a ordem se repetia, e ela obedecia, sem falar um “a”, pois não era
possível questionar.
Questionamentos viriam depois, no transcorrer da
vida, quando faria o gênero rebelde que obedece todas as regras. Até
ali, seguia os passos da sua mãe, uma dissidente calada, oprimida pelas
chibatas da indiferença e do silêncio.
No
ano de 1966, viviam aquela pobreza em que faltava muita coisa, menos a
cerveja, afinal, ao chefe da casa tudo, aos outros a escassez e a
obediência. A menina tinha onze anos, e não pensava, pois a ela não
cabia sentir raiva, apenas obedecer. Entrava nos bares como um robô,
exata, quase sem olhar para os lados e sem hesitar em seu objetivo.
Atenta, desde pequena, ouvia sua mãe falar: caso algum homem desconhecido
converse com você, oferecendo bala ou doce, não aceite, fuja e se ele
insistir, comece a gritar.
Por sorte isso nunca aconteceu em tempo
algum. Mas o aviso já estava dado desde o berço. No bar não seria
diferente, no entanto, vendo os vídeos de hoje, e a associação para o
crime, não é difícil imaginar o risco dessa criança entrando em bares à
noite. Como seria fácil um desaparecimento, considerando que mentes
criminosas nunca foram prerrogativas da atualidade. Isso para suprir o
desejo de beber cerveja do seu pai, necessitado de mais álcool.
19 de maio de 2018
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