Análise: Papa Francisco busca o
fim da retórica de confronto
REINALDO JOSÉ LOPES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
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A longa declaração dada pelo papa
Francisco retoma e amplia os temas abordados por ele na entrevista-surpresa
realizada a bordo do avião que o levou de volta a Roma após sua visita ao
Brasil.
A essência do que disse desta vez
o pontífice é a mesma, mas a nova entrevista é a expressão mais clara até agora
de que Francisco deseja acabar com a retórica de confronto ou de isolamento
adotada por boa parte da hierarquia da Igreja Católica nas últimas décadas.
Papa critica obsessão da igreja
por aborto, casamento gay e contracepção
Por mais que Francisco reverencie
a memória de seus predecessores, fica muito difícil não ver o contraste com a
cruzada de João Paulo 2º contra o aborto e a maneira como o papa polonês
condenava a "cultura da morte" do mundo moderno; ou a diferença de
estilo com Bento 16, o qual, como teólogo, aceitava mais ou menos de bom grado
a ideia de que os cristãos estavam destinados a se tornar uma simples
"minoria criativa" num mundo cada vez menos religioso.
O papa argentino, por outro lado,
quer atrair o máximo possível de pessoas de volta ao seu rebanho ou, no mínimo,
de volta a algum diálogo com a igreja. E ela deve ser "um lar para todos,
não uma pequena capela capaz de abrigar apenas um grupo seleto de
pessoas", como ele declarou.
Na entrevista, Francisco usou uma
imagem ainda mais impressionante, a da igreja como um "hospital de
campanha", que tem de saber acolher todos os que estão na "UTI
espiritual", por assim dizer.
Essa metáfora talvez seja a chave
para entender as declarações do pontífice latino-americano sobre o aborto e a
homossexualidade. Mais de uma vez, ele ressaltou que sua abordagem
"compassiva" não contradiz o que está estabelecido no catecismo da
Igreja Católica. Portanto, não se deve esperar uma bula papal aprovando casamentos
de homossexuais em cerimônias celebradas por padres ou declarando que o aborto
não é pecado, por exemplo.
Mas Francisco deixou claro que a
"obsessão" da hierarquia católica com o debate político em torno
desses temas deixou em segundo plano o que ele vê como mensagem central doEvangelho:
o amor e a misericórdia de Deus. É isso o que "acende um fogo no
coração" das pessoas, disse ele, citando o Evangelho de Lucas. Para o
pontífice, esquecer isso faz com que a igreja pareça incitar o ódio contra os homossexuais,
o que ele condena.
Do ponto de vista político, é
significativo como o papa faz referências a alguns dos grandes ícones da era do
Concílio Vaticano Segundo, encontro de todos os bispos do mundo que iniciou um
processo de modernização da Igreja Católica.
Brincando a respeito de seu
próprio autoritarismo quando chefiava os jesuítas argentinos, ele defendeu
diálogo mais constante e franco entre os bispos e a cúpula do Vaticano e
ressaltou que, em última instância, os protagonistas da igreja são os fiéis, e
não a hierarquia. Criticou quem se apagava de maneira "ideologizada"
a tradições como a missa em latim.
Para quem espera mudanças
institucionais rápidas de Francisco, o ponto fraco da entrevista talvez seja
sua disposição em não se apressar.
"Creio que sempre seja
necessário tempo para implantar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. E
este é o tempo do discernimento."
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