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quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Há 60 anos, famílias doavam um pires de farinha a mendigos de Montes Claros

Mendigos

POR Ciro dos Anjos

Naquele tempo, a cidade era pequena. Dizia-se que contava cinco mil habitantes, para que a rival Teófilo Otoni não a suplantasse.
No recesso do lar aonde não chegavam forasteiros, os montesclarenses, aceitam, porém, humilhados, a fria estimativa do oficial do registro civil, que, inimigo do povo, não concedia à sede do município, mais do que quatro mil almas.
- “E, olhem lá!”, acrescentava, ameaçador, com que inclinado a reduzir mais ainda a cifra.
Aparentemente, nada inquietava a pequena comunidade, a não ser o imprudente desejo de se ligar à Capital e ao Rio, pela pequena estrada de ferro. Mais tarde, sentiria na própria carne, como as estradas de ferro, trazendo riquezas e misérias, roubando o idílico sossego das terras do sertão.
Havendo a cidade sido plantada à orla da rica faixa de calcáreo, o grão produzia cento por um, como na terra prometida ao povo de Israel, tinha-se a impressão de que os frutos do solo davam para todos.
Não era fácil ao menino descobrir a pobreza escondida, a penúria habilmente disfarçada naquelas casas em que, se a comida não chegava a faltar – tão barato era tudo o que vinha das roças – escasseava, entretanto, o dinheiro para o senhorio, para a conta da farmácia, para as compras da moça na loja. A magra polenta que se dava, de manhã, aos filhos do vizinho em vez de biscoito ou de bolo, com o farto leite espumante, não me infundia suspeitas; antes, supunha eu, ou me fazia crer, que era hábito da cidade distante de onde eles tinham vindo, um dia, um tanto misteriosamente.
A aparência, pois, era de que não havia ricos muito ricos, nem pobres demasiado pobres. A maior parte da população se distribuía pelos muitos grupos intermediários que vão da pobreza à abastança.
Não havia indústria, e o comércio adstringia-se às necessidades da reduzida zona.
Uma lavoura ativa, de pequenos sitiantes formigas, trabalhando o solo fértil.
Desconheciam-se, então, as monótonas pastagens, que despovoaram a terra mais tarde, disputando-as àqueles que semeavam o feijão, o milho e o arroz.
A moderação e a poupança eram impostas pelas circunstâncias: oito dias de viagem de tropa e pelo menos dois de trem se gastavam no transporte de mercadorias e forçoso se tornava que o comércio se limitasse às coisas essenciais.
Sem dúvida, havia cetim e sapatos de duraque para as granfinas e casemira inglesa para a sobrecasaca dos senhores vereadores, mas o luxo tinha ares de inocência e não chegava a irritar a ninguém.
De uma pessoa que se vestia com apuro, dizia-se que era “lorde”, vocábulo que devia originar-se do inglês lord.
Existiam naturalmente mendigos e uma tradição de sovinice estabelecera que se lhe desse farinha de mandioca aos sábados como esmola.
Não sei onde punham tanta farinha (em cada casa ganhavam um pires) e era razoável que torcessem a cara toda vez que recebiam nova dose.
O cego Ventura, de quem os maledicentes diziam ter vista de lince, exasperava-se quando, na porta de nossa casa, o obsequiávamos com o infalível pires de varinha.
- “Ao menos, feijão, para variar!”, rosnava. Em todo caso, aceitava a esmola e, atirando-a ao saco, ia, segundo as más línguas, pô-la de novo em circulação, vendendo-a no mercado, através de intermediários.
Os mendigos usavam placa da Municipalidade e eram pessoas de certa importância na vida local. Davam, Deus me perdoe, a impressão de estarem perfeitamente à vontade. Não me lembro de ter conhecido nenhum lamuriento que viesse a maldizer a sorte. Participavam frequentemente das conversações de porta de farmácia, opinando, sobre a solução de problemas urbanos e discutindo as posturas municipais.
Citarei, entre outros, o Braz Tesoureiro, e o Vicente Cego (que, trancado num quarto, para deixar o vício da embriaguês, fabricou aguardente com duas ou três melancias que lá achou e foi encontrado bêbado), a Brasilina, também chamada “meu anjo”, a Custódia.
Alguns deles não esmolavam às portas. Eram mendigos de qualidade, recebidos nas cozinhas – ou na sala de jantar, e a quem a dona de casa dava diretamente a provisão semanal. Tínhamos em nossa clientela cinco ou seis destes, que foram herdados dos nossos avôs.


Fonte: Páginas 430 e 431 do livro “Montes Claros: sua história, sua gente, seus costumes”, organizado pelo médico, historiador e folclorista, Hermes Augusto de Paula, edição de 1960      

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