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quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A sociedade capitalista não é para pássaros

POR Maria de Quadros

“Onde havia peixes, há mercúrio. Onde havia florestas, há cinzas.”

Roberto Burle Marx (1909-1994)

“Eu estou cansado, chefe... cansado de estar na estrada sozinho, como um pardal na chuva, estou cansado de nunca ter um amigo para me dizer para onde a gente vai, de onde a gente vem... estou cansado das pessoas serem más umas com as outras e estou cansado da dor que sinto e ouço no mundo todo dia, tenho muitas dores, são como pedaços de vidro na minha cabeça o tempo todo... pode entender?”

Personagem John Coffe no filme “À Espera de um Milagre" interpretado por Michael Clarke Duncan (1957-2012)

Ela estava a tomar banho, saiu molhada do banheiro, pisou no chão, caiu de mau jeito, torceu o joelho e quebrou a bacia. Está imobilizada em uma cama de hospital. Tem 23 anos. Estava prestes a se formar no curso de Ciências Exatas da Saúde. Analfabeta, a avó cansou de aconselhar: após o banho, seca o banheiro, Miguelina! Quem não ouve conselho, ouve coitado!

Miguelina tem um apartamento na cobertura do Edifício Burle Marx, centro de Montes Claros, Norte de Minas Gerais. Viu seu ex-namorado Clemêncio Baeta do Espírito Santo, de camisa azul Seeder, calça preta Topper e sandálias Rider. Clemêncio observava um filhote de passarinho que se escondia entre o calçadão da Avenida Deputado Esteves Rodrigues e um veículo automotor da cor prata.

O porteiro, que era apaixonado pela “dona do primeiro andar”, é interfonado por uma condômina loira ciumenta e essa o solicita que vá averiguar aquele rapaz branco, de óculos e gordo que tenta, a todo custo, salvar aquele passarinho. Ele assobiava sempre para o pássaro. Tentou com um galho retirá-lo de lá. Mas o passarinho não queria quebrar esse galho. Tinha medo da gente.

A criatura menos oprimida do Edifício Burle Marx, o porteiro, sai para conversar com o salvador de passarinhos. Tenta pegar a ave, mas ela é mais sensitiva e escapa das garras capitalistas daquele ser humano menos ambicioso. E o pássaro cantava, cantava, cantava “a beleza de ser um eterno aprendiz” e à espera de um milagre. O grito era semelhante ao “Canto das Três Raças”. Preferiu ficar alojado debaixo do pneu do carro do que cair em garras capitais.

Maria de Quadros é docente da Escola Estadual Dr. João Alves