“Um grita em falsete: mais pó!, no que
é acompanhado por um inesperadamente bem afinado coro. Mais pó! Mais pó! E veio
mais pó, agora entregue por garçons e garçonetes em pequenos saquinhos
plásticos de 200 gramas. A temperatura se aproxima da fervura. E a fervura
é finalmente atingida quando alguém pede ao maestro a música que se tornou em
todo o país o símbolo maior do tempo-pós nas medianas mentes: Viver e
não ter a vergonha de ser feliz...”. Página 121 do livro “O
Sequestro da Amazônia - sexo, drogas e ecologia (ou O Casamento de Nietzsche
com Foucault no Inferno Verde)”, do professor Leovegildo Pereira Leal, Belo
Horizonte, 2006, 1ª Edição; capa e projeto gráfico: José Augusto da Silveira
Filho; ilustração de capa: Rodrigo Spotorno
O Sequestro do Cerrado: Sexo, Drogas e
Ecologia, o casamento de Nietzche com Foucault no deserto verde
Rosa não reconheceu o seu sertão quando
viu lá do céu aquele monte de monocultura do eucalipto e notava aquele bocado
de proletários casados e caracterizados de senhoras perfeitas e senhores
competentes debaixo de sol quente e condicionados a ares artificiais da
sociedade multicultural globalizada sem pé, nem cabeça. “Onde estão as minhas
veredas?”, esbravejou e fez ventar, relampejar, trovejar e chover na região.
Representantes comerciais lotavam hotéis no Norte de Minas Gerais. Seu meio de
transporte principal era o avião e alugavam carros para conhecer novos ares de
comunicação. Entendiam de exploração de mineração e de cuidar daquela planta
pontiaguda que mais parecia com um falo humano.
Reservavam e chegavam de surpresa nos
hotéis, a partir das 18h, bem na hora da troca de turno, pediam um lanche
rápido, tomavam banho, assistiam aos jogos da TV a cabo, dormiam e saiam logo
cedo, banhavam-se e sentavam-se à mesa para simples e forte café da manhã para
plantar, reflorestar e devastar. Eram verdadeiros trabalhadores da Vinha do
Senhor. Até os patrões se comportavam de acordo com o padrão trabalhista.
Detestavam os Prates perfumados que se
hospedavam nos quartos 69, perdiam perfumes caros e desesperavam-se, transavam
com mulheres da vida, comiam e bebiam do frigobar e saiam malandramente antes
que o recepcionista pudesse cobrar a conta, tudo conforme a educação formal. Os
Prates queriam comer em pratos limpos, porém se sujavam facilmente no instante
da sua limpeza diária, como defecar, urinar e escovar os dentes.
Prates adora sair nas Festas de Agosto
para tocar tambor com seriedade, de cara brava e fechada, como se estivessem a
cumprir um ritual cabalístico e não a verdadeira alegria da religiosidade
popular e do Canto das Três Raças.
Tupinambás também eram acolhidos.
Cheiravam a gambás, no entanto, disfarçados de catopês, marujos, caboclinhos e
de operários da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e
Parnaíba (Codevasf) construíam imensas barragens, esperavam a chuva enchê-las,
poluíam-nas de rejeitos tóxicos, em área bastante rural do Brejo das Almas, e
proibiam a população triste de remanescentes de quilombos de utilizá-las. Até
Russo ficou aflito quando esteve frente a frente com aqueles Tupinambás
respeitosos de cabelos embranquecidos supostamente defensores dos mais
oprimidos e que guerreavam como ninguém para manter intacta a tradição, a
família e a propriedade.
Acusavam os pastoralistas Moura, Gomes,
Horta, De Oliveira, Da Silva, Alemão, Rodrigues, Dias, Queiroz Carvalho, Santa
Rosa, Santos Silva, Martins, Moreira de Arruda, Da Costa, Marques, Alves, De
Souza, Faggi de causar desordem à ordem pública “caricata e burlesca”. Até os
Diniz Pinto viraram réus e um tal bispo novato de nome dom João Justino entrou
na história. Eles eram machadianos, logo, realistas. Protestavam e lutavam
contra a criminalização dos movimentos sociais e de pequenos agricultores,
pesqueiros, vazanteiros, geraizeiros, atormentados pela invasão da vida na
cidade sobre a vida no campo. “Ora, falam de cidadania, aqueles que habitam a
cidade, e nós, camponeses, o que somos?”, reclamavam. O Focado Fernandes de
Oliveira e o Proativo Soares Martins mudaram de Teófilo Otoni, no Vale do
Mucuri, para Riachos dos Machados. Compraram uma moto e fizeram a mudança eles
mesmos. Soares observava tudo do lado de fora. Gonçalves, o geminiano, ria pura
e cinicamente da situação. Já viveu aquilo ao seguir o exemplo da vida de
guerrilheiro de um excelente artista.
Amorim, um sonhador que trabalha
enquanto sonha, hospedava-se constantemente no quarto 66. A televisão
anal...lógica estava prestes a perder o sinal, mas sua estranha mania de burlar
a recepção, não. O casal homem negro malhado e mulher branca loira obesa e com
educação burguesa desenvolviam a farra quando se aconchegavam no quarto 99: era
sexo, drogas, bebidas, pouca ecologia em um quarto fechado de hotel que a
Justiça não pode entrar, porque é espaço particular, mesmo se não concluído o
pagamento.
Borges chegava sempre em sua picapinha
branca e observava que o posto ao lado maltratava a legislação ambiental ao
lavar com muita água os restos de óleo combustível e espalhá-los na rua. As
bandas de trio-elétrico se abrigavam logo nos quartos para fumar o cigarrinho
do capeta. E muitas histórias virão depois. Trabalhar em hotéis é viajar sem
sair do lugar.
Coletivus Urbanus
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