Já
observou o comportamento de uma criança diante de um desconhecido? Ela se
aproxima com as mãos dele e o tateia. Sente a pele. Já observou como os bebês
se animam quando estão perto de uma negra? Os olhos chegam brilhar. Na física,
branca é a cor que reflete todas as outras cores, espalha energia. Preto é a
cor que absorve todas as outras cores, absorve energia. Se levarmos para o lado
histórico-cultural, o negro sempre teve mais força acumulada para o trabalho
escravo que exercia. Constituiu, ao lado dos indígenas, os primeiros exércitos
nacionais. Os brancos eram tranquilos. Mandavam e a plebe obedecia.
Já
reparou como ficamos diante de uma pessoa estranha que se achega perto de nós
para pedir algo nestes tempos pós-modernosos? Armamo-nos de todos os
subterfúgios para afastá-la de nosso convívio. E se ela estiver suja, mal
vestida, fedida, for negra, mulher, gorda, peituda com muito leite, com dois
filhos em cada braço? Ignoramos por completo. Se existe uma pessoa sentada
quieta em um canto da rua, já ligamos o sinal de alerta para a possibilidade de
ser um bandido, esquecemos que tem muita gente que trabalha à noite como vigia.
Por
que a sociedade contemporânea nos faz ter tantos preconceitos? Por qual motivo
esse preconceito é maior com as pessoas de menor poder aquisitivo? Cometemos
algum crime por estarmos acima dessas pessoas? Somos sociáveis ou anti-sociais
nesses casos? Por que diferenciamos as pessoas pelo nível econômico da sua vida
ou pela cor da sua pele, ou pelo seu gênero, ou pela sua tatuagem, pela sua
roupa, pelo seu brinco, pelo tipo do seu cabelo? O diferente nos assusta tanto
assim por andarmos na moda da sociedade capitalista? Estamos na moda
padronizada ou etiquetados de marcas?
Com
uma injeção letal anestésica, a ideologia dominante da sociedade capitalista
aplica pela nossa pele os juízos de valor que necessitamos para viver: em
sociedade, em equipe, em família, individualmente? As igrejas estão, a cada dia,
mais segmentadas. Guetos se formam a rodo. O ser humano hoje em dia está tão
burguês, midiático, intimista, narcisista, racista e preconceituoso que nos dá
medo.
O
forró universitário se transformou em uma música de fuga da realidade, contudo,
é mais sofrência que a própria realidade social. O funk atual faz o homem e a
mulher cantarem e dançarem com tamanha violência como se estivessem tomando uma
dose de crack ou de cocaína na veia. A vida está tão ruim para precisarmos de
tantos energéticos, suplementos alimentares, sustâncias sobrenaturais para
sairmos em direção ao mundo metafísico? Onde o ser humano se perdeu que ele
está tão perdido? Dói ser fraternal?
Se
mencionarmos agora um nome de um compositor de uma música, garantimos que muita
gente não vai nem terminar de ler este texto. Por que o rap, o samba-raiz, o
forró pé de serra, o rock nacional da gema perderam tantos adeptos? Falar da
realidade é ruim? Será? E se a letra da música começar com coloquialismos, aí é
que o preconceito se tornará insuportável, como se fôssemos todos professores
de português, técnicos de futebol, médicos. E para evitar alguma discussãozinha,
ainda tem aquela saideira argumentativa: gosto não se discute ou religião,
futebol e política não se misturam. Mas e a qualidade das nossas ideias e dos
nossos ideais? Onde foram parar?
“Ainda
há tempo” de mudar. Criolo manda bem! “Cê quer saber/Então
vou te falar/Porque as pessoas sadias adoecem/Bem alimentadas ou não/Por que
perecem?/Tudo está guardado na mente!/O que você quer nem sempre/Condiz com o
que o outro sente/Eu tô falando é de atenção/Que dá colo ao coração/e faz
marmanjo chorar/Se faltar/Um simples sorriso/Ou às vezes um olhar/E que se vem
da pessoa errada/Não conta/A amizade é importante/Mas o amor escancara a tampa/E
o que te faz feliz/Também provoca a dor/A cadência do surdo no coro que se
forjou/E aliás, cá pra nós, até o mais desandado/Dá um tempo na função quando
percebe que é amado/E as pessoas se olham e não se falam/Se esbarram na rua e
se maltratam/Usam a desculpa de que nem cristo agradou/Falô, você vai querer
mesmo se comparar com o senhor? /As pessoas não são más/Elas só estão perdidas”.
Se até o grande gênio e poeta do samba verdadeiro Angenor de Oliveira (1908-1980),
o nosso mestre Cartola, sentiu na pele a dor do preconceito, qualquer um de
nós, meros mortais, poderá sentir o mesmo efeito da rejeição. O que precisa ser
feito é não reificar e reforçar esses valores nefastos que impedem a construção
de uma sociedade totalitária, ou seja, para todas as pessoas. Jogue seus preconceitos
e suas idiossincrasias diretamente na lata de lixo, sem direito à reciclagem,
porque o amor vencerá!
Preconceito: “Crime, é mais que um crime/É
desumanidade, essa perseguição/É o cúmulo da maldade/Se todo mundo sabe que nós nos casaremos, quer
queiram, quer não/Oh, maldito
preconceito/Afasta-te no ajeito, a
que nada conseguirás/Por quê, recebemos dos céus a benção de Jesus, que
é mensagem de paz/Nosso amor não acaba mais/Viveremos sempre em
paz”.
Cartola nasceu negro e pobre. Trabalhou de
pedreiro e de lavador de carros. Enfrentou o preconceito racial e de classe com
muita cordialidade. Aprendeu a compor escutando as músicas litúrgicas na porta
da igreja católica. Utilizava sempre uma cartola na cabeça, mesmo trabalhando
em obras. Foi um dos maiores compositores e cantores da música popular brasileira.
Cartola compôs ou teve um “boi com abóbora” (iluminação) ao fazer a letra da música “Ensaboa mulata”. Na caretice contemporânea em que nos
encontramos, provavelmente Cartola seria chamado de racista e machista por
causa dessa letra. Mas foi um verdadeiro romântico. “Ensaboa mulata
ensaboa/Ensaboa tô ensaboando/Estou lavando a minha roupa/Lá em casa estão me
chamando dondó/Ensaboa mulata ensaboa/O fio que é meu/Que é meu e que é dela/Rebenta
guéla de tanto chorar/O rio tá seco o sol não vem não/Vortemo prá casa chamando
dondó”.
E o que dizer da letra de “Escurinha”? “Escurinha/Tu Tem De Ser Minha/De Qualquer Maneira/Eu Te Dou
Meu Barraco/Te Dou Meu Boteco/Que Tenho No Morro De Mangueira/Comigo Não Há
Embaraços/Vem Que Eu Te Faço, Meu Amor/A Rainha Da Escola De Samba/Que Teu
Preto é Diretor/Quatro Paredes De Barro/Telhado De Zinco/Assoalho No Chão/Só Tu
Escurinha/É Quem Está Faltando No Meu Barracão/Sai Disso, Tolinha/Aí Nessa
Cozinha Levando A Pior/Lá No Morro Eu Te Ponho No Samba/Te Ensino A Ser Bamba/Te
Faço A Maior”.
Para cada momento pessoal e contexto social, Cartola escrevia um “boi
com abóbora”. O nascer do sol sempre foi motivo para Cartola ter belas ideias,
mesmo em condições materiais adversas. “Alvorada lá no morro/Que beleza/Ninguém
chora/Não há tristeza/Ninguém
sente dissabor/O sol colorindo é
tão lindo/É tão lindo/E a natureza sorrindo/Tingindo,
tingindo/A alvorada.../Você
também me lembra a alvorada/Quando chega iluminando/Meus caminhos
tão sem vida/E o que me resta é bem pouco/Ou quase nada, do que
ir assim, vagando/Nesta estrada perdida/ A alvorada...”.
Para Cartola, sempre o sol
nascerá. “A sorrir/Eu pretendo
levar a vida/Pois chorando/Eu vi a mocidade/Perdida/Fim
da tempestade/O sol nascerá/Finda esta saudade/Hei de ter outro alguém para
amar/A sorrir/Eu pretendo levar a vida/Pois chorando/Eu vi a mocidade/Perdida”.
Era “a cor da esperança”. “Amanhã,/A
tristeza vai transformar-se em alegria,/E o sol vai brilhar no céu de um novo
dia,/Vamos sair pelas ruas, pelas ruas da cidade,/Peito aberto,/Cara ao sol da
felicidade./E no canto de amor assim,/Sempre vão surgir em mim, novas
fantasias,/Sinto vibrando no ar,/E sei que não é vã, a cor da esperança,/A
esperança do amanhã”.
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